quinta-feira, outubro 26, 2017

Um Encontro Inesperado

O que nós somos e como a vida nos transforma.

Obrigações de natureza profissional levaram-me hoje à Quinta Pedagógica do Fundão para acompanhar um workshop sobre estimulação sensorial.

Estavam lá dezenas de séniores.

De repente há uma mão que me acena, uns olhos que quase saltam do rosto e não escondem um misto de emoção e alegria.

Ao mesmo tempo há uma voz trémula que chama por mim. Aproximo-me ainda mais e reconheço o senhor Américo.

O meu tio Américo!

Quem o viu e quem o vê.

O homem do campo que criava gado e cuidava das hortas, o homem que a dureza da vida obrigou a ser rijo e rude é hoje um ser indefeso.

A idade e a doença apoderaram-se de um dos últimos guardadores de rebanhos da Gardunha.
A minha serra que também é a dele foi devastada pelo último crime contra a nossa floresta.
As chamas que tudo lamberam e devastaram as enconstas onde meu tio tantas vezes picou os dedos a apanhar castanhas.

As melhores castanhas cá da terra eram as do tio Américo.

Eram! Disse bem. Pois o efeito do fogo e a fragilidade humana do tio Américo colocarão em causa a produção de castanha.

Se é que a mesma já não estava suspensa!

O Tio Américo há muito tempo que havia deixado a vida no campo e até já tinha trocado a casa localizada junto à ribeira de Alpreade por outra mais confortável e de fácil acesso no centro da Aldeia Histórica de Castelo Novo.

Anos antes, muito anos antes, o tio Américo foi um dos resistentes das intempéries e da inclemência do fogo.
Quantas vezes as chamas varreram a "serra dos correias" e a "pelada" na enconta da Gardunha que faz fronteira com Alcongosta?

Tantas vezes a neve, o vento gélido e os incêndios o fizeram gritar "ai Jesus"!

Hoje em dia o suspiro e a crença prendem-se com outras dores e provações.

A falta de saúde e uma inesperada cirurgia atiram-no para a Unidade de Cuidados Continuados do Fundão.

Hoje encontrei-o numa daquelas jornadas em que os técnicos de saúde e as equipas de animação da Santa Casa da Misericórdia do Fundão acrescentaram vida aos anos do tio Américo e de todos os outros idosos que com ele estavam reunidos na Quinta Pedagógica do Fundão.




Entre os exercícios e as músicas de antigamente o meu tio Américo lá confessou que gosta de ali estar e que o tratam bem. De lágrima estendida na face direita do rosto mais magro e menos corado, o tio Américo confidenciou-me que a tia Adelina também está doente. "Teve um problema e tem estado no hospital mas o mal já está curado, amanhã vai para casa", explicou-me.

Dentro de dias prometo ir ao encontro do meu tio. Talvez lhe faça bem ver uma cara mais familiar ! Talvez, nessa ou noutras visitas "de médico", eu seja capaz de o fazer recuar no tempo e ele me conte sobre a labuta de antigamente.

A criação de gado. Os cabritos. As peles que vendia a 1.500 escudos. Os queijos. O essencial de uma vida nos campos que as chamas reduziram a cinza!

Oxalá essas vivências de homem da Gardunha continuem registadas na memória de quem enriquece o meu baú de recordações em família!







terça-feira, outubro 24, 2017

Bem-Haja

Há uma música do Caetano Veloso que diz assim:
(…) Quando a gente gosta 
É claro que a gente cuida  (…)

A letra de “sozinho” pode parecer que aparece aqui desgarrada daquilo que me proponho partilhar com os leitores. Mas não!
A mesma encaixa no desabafo digital que observei há dois dias quando um jovem empreendedor manifestava admiração e gratidão por aqueles que são capazes de elogiar e dar força para o caminho.

Efetivamente, não conheço ninguém que não goste de uma palavra de felicitações, um aplauso pelo êxito de uma iniciativa ou pela perspetiva de afirmação de um projeto.

Mas, na verdade, também não conheço muita gente capaz de nos transmitir uma palavra de apreço ou regozijo pelo nosso êxito.
E aqui entra o elogio. Elogiar não tem de ser subserviência ou bajulice.  

Mas convenhamos que um elogio faz bem! Enche-nos de orgulho, estimula-nos a entrega, o sentido guerreiro, o apego às nossas causas.
Porém, quem é capaz de nos dar um elogio sem segundas intenções? Quem é capaz de reconhecer com honestidade os nossos passos ou o percurso adotado?

Lembrem-se lá!
Digam-me que estou a ser bastante injusta. Digam qual foi a última vez que o vosso chefe elogiou o vosso trabalho?

E aqui lembro-me imediatamente de António Paulouro. O fundador do Jornal do Fundão e da Rádio que me preencheu a vida durante 22 anos, nunca me fez um telefonema para enaltecer um noticiário. Nunca! De cada vez que o telefone da redação da Rádio JF tocava era sempre para criticar, exigir, sugerir.

Às vezes sentíamo-nos deprimidas com a frieza das palavras, com a ausência de um gesto de satisfação pelo empenho e dedicação dos que escreviam, produziam e apresentavam as notícias.

Mas António Paulouro ouvia os noticiários. E puxava por nós! Também nos surpreendia com questões de natureza literária e ai de quem não estivesse a ler um livro!

Agora que observo a gratidão do jovem empreendedor pelo reconhecimento e odes ao seu percurso empresarial, recordo-me de António Paulouro e só posso estar-lhe grata pela atenção que dava ao meu trabalho. Ao nosso trabalho coletivo.
Bem-haja António Paulouro!

Se outros lhe seguissem o exemplo, certamente muitos menos se sentiriam órfãos no seu trilho laborioso.


terça-feira, outubro 03, 2017

Uma Doçura de Teimosia

Qualquer dia faz dezasseis anos. Está uma mulher!
Há maneira que os anos avançam o perfil de menina torna-se mais refinado e damos-nos conta do quão parecidas somos.

Lá em casa as semelhanças dão um jeitão à classe masculina do clã. Vezes sem conta ouve-se uma voz mais poderosa e rabujenta que nos lembra a autenticidade dos nossos traços e modos de agir. 
- És mesmo como a tua mãe! 
A tirada do mais adulto homem da casa quase sempre tem resposta. E a mesma traduz-se numa estridente e cumplice gargalhada.

Mas como em tudo na vida, a rotina nem sempre veste azul ou transborda as cores do arco-íris. 
A Nina, como lhe chamo desde bebé, é uma doçura de teimosia. O modo de ser e as reações intempestivas que herdou da progenitora, quase sempre seladas com um ruidoso bater de porta, desaparecem instantes depois.
Na terminologia moderna chamar-lhe-ia bipolar. Mas eu, que sou tão igual a ela, perfiro caracterizá-la como mau feitio.

E o que é ter mau feitio, ser intempestiva ou bipolar?
Não quereremos dizer que somos determinadas? Exigentes...

A menina quase mulher é, efectivamente, uma rapariga determinada. Na escola, no desporto e nas relações interpessoais.

Os últimos tempos não têm sido fáceis pois o clã passou de cinco para quatro elementos. 
A "Judite Sousa" lá de casa está menos perto de nós. Menos presente. Ainda que seja um afastamento físico nenhum de nós esconde que temos saudades dos monólogos da "Judite Sousa" e da forma organizada e metódica que desde sempre caracterizam o seu percurso.

É diante esta realidade que o par de intempestivas reganha uma cumplicidade adormecida. 

A distância forçada de um deixou mais espaço e tempo para a mau feitio mor  renovar os laços umbilicais com a nadadora e pianista que sonha ter muitos filhos e casar com um homem rico.

Sim, o leitor percebeu bem! A Nina quer ser uma mãe de mão cheia. Contudo, não será a fada do lar.

Nós, pessoas determinadas e audazes, temos um enorme apego à família e alimentamos o cordão umbilical mas também queremos voar!

Voemos! Sejamos sempre uma doçura de teimosia. Nem que seja para que o Tiquita tenha a certeza que também o amamos muito. Tiquita será sempre o benjamim da família. E os traços de doçura teimosa já começam a dar sinais.

E agora que a prosa intimista chega aos fim, apetece-me dizer-vos: A Nina, que é sangue do meu sangue e papel químico dos Gabriel, tem sido o nosso amparo.

Ela é forte e determinada. Confia no amor incondicional e sabe promovê-lo.

Que a harmonia e musicalidade continuem a ser a banda sonora de nossas vidas.


Eugénio de Andrade o poeta maior

 Fui à Póvoa. À terra do poeta nascido há uma centena de anos. Encontrei memória falada, orgulho e expetativa quanto à importância de Póvoa ...