No outro dia a RTP Memória surpreendeu-nos com a transmissão de um documentário sobre as tradições religiosas de Castelo Novo e o calendário agrícola. As filmagens remetem-nos para o ano de 1973 do século XX e são uma viagem pela preparação das festas do Corpo de Deus.
«Ensaio» é o título do documentário que pode revisitar nestes dois links:
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/castelo-velho-castelo-novo-parte-i/
Neste vídeo observamos o cruzeiro, estradas romanas, vista geral, castelo, lagareta (ruína romana); declarações de José Falcão, presidente da Junta de Freguesia, junto a cruzeiro, sobre a Freguesia e a emigração, intercaladas com imagens de brasão na fachada da Casa da Família Falcão, Chafariz Fundeiro, frontaria da Igreja Matriz, varanda de madeira, fachada de capela e detalhes do sino e da cruz, pormenores de janelas e ruas.
Seguem-se "Os Trabalhos do Campo": camponesas a sacharem milho; comentários de camponesas sobre o trabalho agrícola e a família; declarações de José Falcão, sobre a antiga fábrica de lanifícios, intercaladas com imagens do edifício fabril degradado.
"A Urdidura do Fio": fios de linho esticados; caixa com novelos de algodão; Maria Saraiva, urdideira, a trabalhar o fio de linho e declarações da mesma sobre a atividade, os utensílios usados e a vida familiar; vista geral de Castelo Novo; capela: detalhe de sino e escadaria; jornalista entrevista José Falcão sobre as Festas do Corpo de Deus e o leilão de beneficência; fiéis em frente à Igreja Matriz.
"A Procissão do Corpo de Deus": procissão do Corpo de Deus: pessoas a sair da Igreja Matriz, a descer as ruas, a passar junto do Pelourinho e à Casa da Câmara; torre com relógio; movimento de rua.
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/castelo-velho-castelo-novo-parte-ii/
Na preparação das festas: homem a acender e a largar foguete, mulheres com criança pela mão, mesas ao ar livre com fruta, habitantes a conviverem.
"O Leilão das Fogaças": leilão das fogaças, homem em cima de mesas a leiloar coelho, mesas com as fogaças e populares à volta; comentários de populares sobre a aldeia, intercalados com imagens de leilão, janela com flores e roupa estendida, ruas de Castelo Novo e fachadas de edifícios e mulher em soleira de porta.
"Conversa com o Pregoeiro": entrevista a José António Campos, leiloeiro e trabalhador da construção civil, sobre as suas profissões e o interesse em morar em Castelo Novo, intercalados com vista geral da Serra da Gardunha e fachadas de edifícios; declarações de José Falcão sobre o regresso de naturais a Castelo Novo, durante as festas populares e após a reforma, intercaladas com imagens do castelo, alpendre em edifício degradado, vasos de flores em fachadas de edifícios e criança à janela.
Comentários de José António Campos sobre as diversões existentes em Castelo Novo e as ocupações dos jovens; altifalante em árvore.
"O Baile": jovens a dançarem em baile na rua e pessoas a assistirem; declarações de José Falcão sobre a Liga de Amigos de Castelo Novo e as infraestruturas planeadas para a aldeia, intercaladas com imagens de homem a trabalhar no campo, fonte e muralha do castelo.
José Falcão, visionário presidente de junta de freguesia num território que chegou a ser sede de concelho e no qual desde sempre se elege a Gardunha, a frescura da água do Alardo e o turismo como elementos de capacitação e valorização da aldeia.
Fracções de memórias passadas. Tempos idos e diluídos na espuma dos dias. A actualidade desta Beira que é a nossa!
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terça-feira, junho 23, 2020
quarta-feira, abril 08, 2020
Instantes do Meu Confinamento 5
Quando Esperar não é uma perda de
tempo…
Sempre fui
avessa ao nim, nem não nem sim, ao logo se vê, depois falamos, cada coisa a seu
tempo.
Não é que
seja uma mulher aparelhada, de sofisticada tecnologia, mais rápida que o vento. Mas sempre achei que não temos tempo a
perder.
Havia
situações em que repetidamente brincava com as notícias que davam conta da
constituição de mais uma comissão, grupo de trabalho, conselho consultivo …. Blá
blá blá.
Na verdade
sempre fui muito de mais vale uma má decisão do que uma não decisão.
Agora que
vivo há três semanas entre casa e o serviço sem direito a outras vidas dou
comigo a experienciar uma condição, até agora, pouco provável em mim.
A condição da
espera. Esperar que tudo acabe em bem. Que a minha família, amigos, conhecidos
e a organização onde passo os dias consigam ultrapassar esta pandemia sem
sobressaltos maiores.
Nesta já longa espera sinto que aprendi a viver sem as
jantaradas de sexta-feira, sem mais uns sapatos, uma carteira ou um vestido
novo.
De hoje para
amanhã, creio até que serei capaz de encontrar uma solução para as raízes dos
meus caracóis.
Uma solução que em nada tem a ver com o registo habitual do se a
cabeleira A não pode, a B deve ter uma aberta. Posso sempre recorrer à C.
E neste instante
ocorre-me a infância em Castelo Novo, entre a serra da Gardunha e a Aldeia e a
véspera de um casamento em Louriçal do Campo. Eu e a minha irmã Paula, meninas
de tenra idade, pais sem recursos e logística para irmos ao cabeleiro a
Alpedrinha. Vai daí o nosso pai improvisa e leva-nos ao barbeiro.
Saímos de lá com
uma tijela na cabeça. Literalmente!
Tudo tem
solução, diziam os meus pais do alto da experiência de quem sempre viveu com
pouco.
Com pouco e
sem pressa. A serra da Gardunha tinha, ainda tem, esse poder de ajudar-nos a
caminhar com vagar.
Vivamos então
esta pandemia com a ponderação e recomendações de quem sabe. Sejamos cautelosos
e capazes de esperar pelo fim deste tempo impeditivo de tantas situações que
afinal se afiguram não essenciais.
Essencial é continuarmos aqui para
contar a história.
Retemperando
energias com a memória dos dias bons. Reflexos da nossa existência
aparentemente comum mas com bases sólidas para hoje em dia sermos capazes de
esperar que a tempestade passe para relançarmos as sementes da amizade e do
amor entre pares.
Todo o amor verdadeiro se faz de uma longa
espera
terça-feira, fevereiro 20, 2018
Pela Gardunha
Já foi há uns dias mas vale sempre a pena dar expressão pública às ocorrencias que nos marcam e contribuem para a valorização de uma causa.
E desta vez a causa foi o pulmão maior do Fundão. Recolher fundos para reflorestar a serra da Gardunha que foi devastada pelos incêndios do Verão passado.
A causa era nobre e por essa razão, mas também pelo amor partilhado à Gardunha, não foi difícil reunir um bom leque de músicos e promover um concerto que também foi um grito de alerta em defesa da serra da Gardunha.
António Manuel Ribeiro, líder dos UHF, apelou "salvemos em consciencia aquilo que é nosso"!
E assim o fizeram as mais de 700 pessoas que naquela noite de Dia de Carnaval se juntaram na cidade do Fundão para juntar a voz à dos artistas que estiveram em palco.
Além dos lendários UHF, estiveram no concerto solidário pela Gardunha os artistas Paulo Ribeiro, Celina da Piedade, Vicente Palma, Anafaia, Grupo de Cantares do Agrupamento de Escolas do Fundão e sessenta jovens estudantes de música na Academia de Música e Dança do Fundão e Escola Profissional de Artes da Beira Interior.
Um momento de união em torno de uma janela do território que começou a desenhar-se há alguns meses pois na noite em que o fogo chegou ao concelho do Fundão, alguns desses músicos estavam, exactamente, no Fundão a dar um concerto.
Nessa noite de agosto de 2017, Vicente Palma, Paulo Ribeiro e Celina da Piedade integravam o coletivo Tais Quais e observaram como a cinza que caia sobre os espectadores que os ouviam significava que mais um atentado contra a natureza estava a acontecer ali perto.
quinta-feira, novembro 02, 2017
Cemitério de Silêncios
No dia em que toda a gente
caminhava para o cemitério subi à Gardunha. A viagem iniciou-se exatamente à
porta do cemitério da minha aldeia Natal. Sim, essa terra onde o silêncio geral
denota o despovoamento agravado pelos incêndios que deixaram um rasto de
destruição e um chão vincadamente negro.
No hora em que o povo
descia desde a igreja até à zona baixa de Castelo Novo para ali prestar
homenagem aos que jazem no cemitério localizado no sopé da Gardunha, contrariei
a tradição, dispensei o momento de oração e silêncio coletivos para mergulhar
numa outra geografia, igualmente marcada por um silêncio sepulcral.
Serra acima, numa manhã
sombria de novembro e a ameaçar chuva, dei-me conta do vasto cenário carregado
de negro.
À primeira paragem, já fora do carro e sem o som da música ambiente, os meus ouvidos fizerem um esforço maior para identificar o chilrear de um melro, um pássaro ou um milhafre ávido de galinhas das capoeiras localizadas nos campos da Gardunha.
Porém as quintas, que foram
resistindo à desertificação do território, estão agora reduzidas a cinza e as
galinhas ou outros vivos que por lá existiram finaram-se em agosto último.
Assim terá acontecido com as raposas e os coelhos que já se passeavam pela serra e certamente sucumbiram ao calor do inferno das chamas.
É então que a viajante se
dá conta do silêncio continuado que a acompanha desde o cemitério de silêncios.
Esse lugar onde habitam os nossos entes queridos e que naquele dia de agosto também terão sentido o inferno do fogo. O bafejar da chama sobre as campas que compõem o "povoado" desse
lugar de invariável confluência anual no Dia dos Santos.
O poder do silêncio do
cemitério foi de tal forma poderoso que a demorada paragem no outrora
paradisíaco lugar da Casa Florestal de Castelo Novo se traduziu em calafrios. A
viajante sentiu uma pontinha de medo quanto à ausência de um único barulho. Nem
um ruído! Uma folha a cair, a serpentear de um lugar para o outro... Até as pinhas estavam todas no chão!
Não se ouvia uma mosca. Nem
havia sinais de vivalma. A água escasseia e não encharca os terrenos à volta do
tanque que se apresentava quase vazio.
Da bica corre um fio do precioso líquido e nem me atrevo a bebê-la pois os incêndios foram há pouco tempo e as chuvas ainda não apaziguaram o manto de cinzas.
Da bica corre um fio do precioso líquido e nem me atrevo a bebê-la pois os incêndios foram há pouco tempo e as chuvas ainda não apaziguaram o manto de cinzas.
São tantos os sinais a adensar
o cemitério de silêncios que até as lágrimas do viajante secaram. A descrença
tolhe-nos o olhar e na alma lembra-nos que quase nada nos prende áquele lugar.
O fogo de há dois meses e
meio levou outra vez o verde da Gardunha e agora a viajante só consegue
identificar os lugares onde tantas pessoas foram felizes!
Embora a Casa Florestal de Castelo Novo permaneça intacta, aquela geografia é, também ela, um cemitério de silêncios. Desapareceu tudo!
Os mosquitos, as moscas, as aves, as raposas e os coelhos.
As árvores que já estavam
a reerguer-se, depois do fogo de há doze anos, também pereceram e delas restam
apenas pequenos troncos dos quais haverá de rebentar uma nova planta.
Uma renovada réstia de fé num amanhã outra vez verdejante e esplendorosamente belo.
Uma renovada réstia de fé num amanhã outra vez verdejante e esplendorosamente belo.
Mas nessa altura a viajante e os amantes da Gardunha continuarão a questionar-se quanto ao abandono a que está votada a Casa Florestal.
Consequentemente lamentarão o avanço da degradação do imóvel onde permanecem os azulejos com letras azuis escuras a dizer “Matas Nacionais”.
Elegantes e com letras bem definidas, os azulejos (felizmente a mão alheia não os roubou!) estão geometricamente colocados na lateral da casa. Estão “esculpidos” sobre a janela do quarto da viajante que uma vez criança, ali sonhou com uma Gardunha sempre romântica e cheia de vida,
É na Mata Nacional do
perímetro de Castelo Novo que a memória conduz o narrador para o tempo em que
debaixo dos imponentes cedros havia bancos e uma mesa hexagonal de granito que alguém
fez desaparecer.
Na antiga sala de visitas
da Gardunha para Castelo Novo e com a Raia no horizonte, também havia arbustos e bancos
onde o guarda-florestal recebia outros viajantes e amantes da sua serra.
Ali, o guardião da fauna e da flora da Gardunha fez tantos amigos como cerejas e também essas deixaram de povoar aquela zona da Gardunha.
Ali, o guardião da fauna e da flora da Gardunha fez tantos amigos como cerejas e também essas deixaram de povoar aquela zona da Gardunha.
Aqui está uma explicação
poética para o vazio que agora se instala na última mesa localizada nas
imediações da Casa Florestal de Castelo Novo e onde o silêncio chega a embrenhar-se
na pele do viajante.
É então que a viajante,
narradora e saudosista da sua Gardunha fixa o olhar naquela mesa e lamenta que
o destino e os erros do homem tenham feito do seu jardim um cemitério de
silêncio localizado na encruzilhada das causas e consequência do fogo.
Numa tentativa de
enriquecer a narrativa que comprova o sentimento de quem passou a manhã no
silêncio da Gardunha, penso num poema suficientemente rico e que seja capaz de traduzir
a mágoa que fica do reencontro com as pessoas e lugares que me fizeram mulher.
Lembrei-me de Pessoa.
Na pesquisa encontrei Álvaro
de Campos
E diz o poema:
Penso em ti no silêncio da
noite, quando tudo é nada,
Penso em ti no silêncio da
noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no
silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim,
passageiro parado
De uma viagem em Deus,
inutilmente penso em ti.
Todo o passado, em que
foste um momento eterno
E como este silêncio de
tudo.
Todo o perdido, em que
foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que
foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser
neste silêncio noturno.
Tenho visto morrer, ou
ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais
nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se
foi um homem ou uma conversa;
Ou um [. . .] assustado e
mudo,
E o mundo hoje para mim é
um cemitério de noite
Branco e negro de campas e
[. . .] e de luar alheio
E é neste sossego absurdo
de mim e de tudo que penso em ti.
s. d. Álvaro de Campos — Livro de
Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização
e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993: 174.
quinta-feira, outubro 26, 2017
Um Encontro Inesperado
O que nós somos e como a vida nos transforma.
Obrigações de natureza profissional levaram-me hoje à Quinta Pedagógica do Fundão para acompanhar um workshop sobre estimulação sensorial.
Estavam lá dezenas de séniores.
De repente há uma mão que me acena, uns olhos que quase saltam do rosto e não escondem um misto de emoção e alegria.
Ao mesmo tempo há uma voz trémula que chama por mim. Aproximo-me ainda mais e reconheço o senhor Américo.
O meu tio Américo!
Quem o viu e quem o vê.
O homem do campo que criava gado e cuidava das hortas, o homem que a dureza da vida obrigou a ser rijo e rude é hoje um ser indefeso.
A idade e a doença apoderaram-se de um dos últimos guardadores de rebanhos da Gardunha.
A minha serra que também é a dele foi devastada pelo último crime contra a nossa floresta.
As chamas que tudo lamberam e devastaram as enconstas onde meu tio tantas vezes picou os dedos a apanhar castanhas.
As melhores castanhas cá da terra eram as do tio Américo.
Eram! Disse bem. Pois o efeito do fogo e a fragilidade humana do tio Américo colocarão em causa a produção de castanha.
Se é que a mesma já não estava suspensa!
O Tio Américo há muito tempo que havia deixado a vida no campo e até já tinha trocado a casa localizada junto à ribeira de Alpreade por outra mais confortável e de fácil acesso no centro da Aldeia Histórica de Castelo Novo.
Anos antes, muito anos antes, o tio Américo foi um dos resistentes das intempéries e da inclemência do fogo.
Quantas vezes as chamas varreram a "serra dos correias" e a "pelada" na enconta da Gardunha que faz fronteira com Alcongosta?
Tantas vezes a neve, o vento gélido e os incêndios o fizeram gritar "ai Jesus"!
Hoje em dia o suspiro e a crença prendem-se com outras dores e provações.
A falta de saúde e uma inesperada cirurgia atiram-no para a Unidade de Cuidados Continuados do Fundão.
Hoje encontrei-o numa daquelas jornadas em que os técnicos de saúde e as equipas de animação da Santa Casa da Misericórdia do Fundão acrescentaram vida aos anos do tio Américo e de todos os outros idosos que com ele estavam reunidos na Quinta Pedagógica do Fundão.
Entre os exercícios e as músicas de antigamente o meu tio Américo lá confessou que gosta de ali estar e que o tratam bem. De lágrima estendida na face direita do rosto mais magro e menos corado, o tio Américo confidenciou-me que a tia Adelina também está doente. "Teve um problema e tem estado no hospital mas o mal já está curado, amanhã vai para casa", explicou-me.
Dentro de dias prometo ir ao encontro do meu tio. Talvez lhe faça bem ver uma cara mais familiar ! Talvez, nessa ou noutras visitas "de médico", eu seja capaz de o fazer recuar no tempo e ele me conte sobre a labuta de antigamente.
A criação de gado. Os cabritos. As peles que vendia a 1.500 escudos. Os queijos. O essencial de uma vida nos campos que as chamas reduziram a cinza!
Oxalá essas vivências de homem da Gardunha continuem registadas na memória de quem enriquece o meu baú de recordações em família!
Obrigações de natureza profissional levaram-me hoje à Quinta Pedagógica do Fundão para acompanhar um workshop sobre estimulação sensorial.
Estavam lá dezenas de séniores.
De repente há uma mão que me acena, uns olhos que quase saltam do rosto e não escondem um misto de emoção e alegria.
Ao mesmo tempo há uma voz trémula que chama por mim. Aproximo-me ainda mais e reconheço o senhor Américo.
O meu tio Américo!
Quem o viu e quem o vê.
O homem do campo que criava gado e cuidava das hortas, o homem que a dureza da vida obrigou a ser rijo e rude é hoje um ser indefeso.
A idade e a doença apoderaram-se de um dos últimos guardadores de rebanhos da Gardunha.
A minha serra que também é a dele foi devastada pelo último crime contra a nossa floresta.
As chamas que tudo lamberam e devastaram as enconstas onde meu tio tantas vezes picou os dedos a apanhar castanhas.
As melhores castanhas cá da terra eram as do tio Américo.
Eram! Disse bem. Pois o efeito do fogo e a fragilidade humana do tio Américo colocarão em causa a produção de castanha.
Se é que a mesma já não estava suspensa!
O Tio Américo há muito tempo que havia deixado a vida no campo e até já tinha trocado a casa localizada junto à ribeira de Alpreade por outra mais confortável e de fácil acesso no centro da Aldeia Histórica de Castelo Novo.
Anos antes, muito anos antes, o tio Américo foi um dos resistentes das intempéries e da inclemência do fogo.
Quantas vezes as chamas varreram a "serra dos correias" e a "pelada" na enconta da Gardunha que faz fronteira com Alcongosta?
Tantas vezes a neve, o vento gélido e os incêndios o fizeram gritar "ai Jesus"!
Hoje em dia o suspiro e a crença prendem-se com outras dores e provações.
A falta de saúde e uma inesperada cirurgia atiram-no para a Unidade de Cuidados Continuados do Fundão.
Hoje encontrei-o numa daquelas jornadas em que os técnicos de saúde e as equipas de animação da Santa Casa da Misericórdia do Fundão acrescentaram vida aos anos do tio Américo e de todos os outros idosos que com ele estavam reunidos na Quinta Pedagógica do Fundão.
Entre os exercícios e as músicas de antigamente o meu tio Américo lá confessou que gosta de ali estar e que o tratam bem. De lágrima estendida na face direita do rosto mais magro e menos corado, o tio Américo confidenciou-me que a tia Adelina também está doente. "Teve um problema e tem estado no hospital mas o mal já está curado, amanhã vai para casa", explicou-me.
Dentro de dias prometo ir ao encontro do meu tio. Talvez lhe faça bem ver uma cara mais familiar ! Talvez, nessa ou noutras visitas "de médico", eu seja capaz de o fazer recuar no tempo e ele me conte sobre a labuta de antigamente.
A criação de gado. Os cabritos. As peles que vendia a 1.500 escudos. Os queijos. O essencial de uma vida nos campos que as chamas reduziram a cinza!
Oxalá essas vivências de homem da Gardunha continuem registadas na memória de quem enriquece o meu baú de recordações em família!
quarta-feira, abril 19, 2017
Canções com Memória
Diz o poema da canção que hoje ecoará no Meo Arena
"Quantas vezes me sinto perdido
No meio da noite Com problemas e angústias Que só gente grande é que tem Me afagando os cabelos Você certamente diria Amanhã de manhã você vai se sair muito bem Quando eu era criança Podia chorar nos seus braços E ouvir tanta coisa bonita Na minha aflição Nos momentos alegres Sentado ao seu lado, eu sorria E, nas horas difíceis Podia apertar sua mão" (...)
O tema belissimamente interpretado por Roberto Carlos é umas das minhas canções de e para a vida. O Rei completa hoje 76 anos. Minha mãe teria completado 72 e meu pai teria no dia 10 de abril alcançado a bonita fronteira dos 98.
Que têm meus pais a ver com uma das mais nostálgicas canções de Roberto Carlos?
Tudo.
Aprendi a ouvir Roberto Carlos nos anos 80 do século XX com os meus pais. Na Gardunha não havia televisão e naquela época também não havia consolas. Eu também não tinha muitos brinquedos nem bonecas. Na tranquilidade (hoje recordo assim a serra da Gardunha) ou na pasmaceira dos dias passados na solidão de que mora na floresta, as horas eram passadas na companhia dos pais e da minha irmã três anos mais nova.
Aos domingos à tarde, quando as temperaturas o permitiam, trazíamos o rádio para as escadas da casa e sintonizávamos a onde média da Rádio Altitude. Apesar de na aldeia as tardes de domingo serem propícias aos bailaricos no salão paroquial, eu permanecia na serra e ouvia os discos pedidos ( sim, naqueles anos a telefonia também dedicava discos e aproximava pessoas ou era remédio contra a solidão!) ao lado da mãe Patrocínia.
Levantávamos o volume do Rádio e mesmo que meus pais se entregassem à rega, à sacha ou às tarefas do campo, havia a certeza de que nenhum de nós perderia o programa emitido a partir da cidade mais alta.
Também havia momentos de pura empatia. Eu e a mãe chegávamos a cantarolar juntas. Às vezes também me sentava na perna direita de meu pai que guardava a esquerda para a mana Paula e fazia cavalinho connosco.
Ali ficávamos a contemplar a paisagem verde, às vezes já com tonalidades de verão e outono, e a receber do mimo incondicional dos progenitores.
"Lady Laura" é uma dessas canções intemporais que, além de um saudosismo profundamente melancólico, me faz recuar ao tempo em que sendo criança me fiz adulta e mulher precoce. Interiorizava o significado de cada uma das quadras da canção interpretada pelo lendário musico que neste 19 de abril de 2017 regressa a Portugal para um concerto que há-de ser memorável.
Às vezes, ou muitas vezes, as canções devolvem-me a lembrança dos dias andados, dos caminhos cruzados com a Gardunha ou outras paragens bem mais planas mas igualmente pejadas de boas lembranças a ouvir as canções do Rei.
E aqui vos deixo outra
https://www.youtube.com/watch?v=54xxnkXqltw
E mais outra
https://www.youtube.com/watch?v=3fuzoSGTNOo
Por razões diferentes são canções com memória.
terça-feira, novembro 29, 2016
Gestos e Afetos
No outro dia fomos visitar o João. Não nos víamos há algum tempo e
com o avanço da idade dos Martins ganhamos consciência de que temos de estar
mais presentes.
Há um tempo em que a magia dos afetos nos convoca a conhecer pessoas.
Muitas Pessoas!
Convencemo-nos que temos muitos amigos e gerimos as nossas rotinas em função do convívio e partilha com esses tantos e muitos amigos.
Muitas Pessoas!
Convencemo-nos que temos muitos amigos e gerimos as nossas rotinas em função do convívio e partilha com esses tantos e muitos amigos.
Mas a vida muda, tornamo-nos mais maduros, perdemos
alguma paciência e tornamo-nos mais seletivos. Às vezes selecionamos tanto que
nos tornamos seres egoístas e pouco disponíveis para o outro.
Em boa verdade essa realidade e tendência a mantermo-nos na zona
de conforto também resulta das desilusões e de observarmos a forma desapegada
que caracteriza a relação entre pares. É como se estivéssemos dentro de quatro
linhas e cada passo fosse uma espécie de jogada na defensiva! E essa autoproteção
resulta, quase sempre, no início de um processo de isolamento que cria uma
certa exclusão entre pares.
Mas não é o desalento quanto à natureza e afetuosidade das
relações que aqui pretendo escrever.
Afinal o mote para esta narrativa foi a visita ao João
Martins.
O João completou 90 Primaveras e era dos melhores e mais
desinteressados amigos do meu Pai. Viu-me crescer, era visita regular a
nossa casa na serra da Gardunha. Acompanhou o meu crescimento e conhecia o João
Gabriel desde sempre. Todos os anos voltava à Gardunha e fazia-se acompanhar de
um punhado de amigos. Durante um tempo o casal Martins e esses outros amigos
passaram a ser nossos amigos também. Aquelas pessoas finas, bem-postas e muito
educadas - como de forma simplista a minha saudosa mãe caracteriza os Martins e
seus amigos - chegaram a acampar nas imediações da Casa Florestal de Castelo
Novo!
Naqueles anos ainda não havia o conceito de Turismo na Natureza e
a Gardunha também não dispunha de um Glamping Natura. Mas os Martins que deixavam
a geografia do mar aviavam-se em terra para, comodamente, se instalarem na
serra. Esse jardim natural cujo foco de maior beleza eram os cedros sob os
quais existiam as mesas hexagonal e retangular com bancos de granito à volta e
que a cada dia de Verão eram bastante procurados pelos turistas!
Mas voltando ao João Martins. Esse Amigo que me viu crescer e
acompanhou o avanço da idade de meu pai, a perda de minha mãe, a minha ida para
a escola, o primeiro emprego e o jornalismo. O casamento e o nascimento de meus
filhos….
O João é hoje o mesmo homem charmoso e inteligente, brincalhão e
amigo do coração, mas está perder energia.
Há dias, nessa tal visita improvisada, que nasceu de
um forte aperto no meu coração, encontrei-o menos alegre, para não escrever triste.
Encontrei-o acabrunhado e desiludido com as consequências do avanço da idade.
Em boa verdade o João cabisbaixo que eu visitei este
novembro é também um homem desiludido com a vida e com os amigos que ainda
estão nesta vida. O João que há muitos anos visitava a Beira Baixa uma a duas
vezes por ano para levar cerejas do Fundão, azeites, queijo, azeitonas e
enchidos da Beira deixou de vir amiúde. Passou a vir mais espaçadamente. E
ultimamente já nem vem!
Deixou de conduzir. Entregou-se á dependência! E embora continue a
caminhar pela cidade de Lisboa, o homem que adora mar e peixe fresco de Setúbal
há muito que se desfez da casa localizada mais perto desse horizonte de
memórias povoadas da imensidão do mar que é como quem diz da plenitude da
amizade e dessa grandiosidade, às vezes finita, dos afetos.
E é diante tamanha circunstância que o João e outros como ele se
dão conta de como a amizade é afinal algo que pode ter os dias contados. E
quando assim acontece, seja por via da finitude do Ser seja por outras razões
que a realidade ainda não partilhou connosco, sentimo-nos mais sós. Foi essa
realidade que pude observar na tranquila e melancólica manhã de Outono quando a
cara-metade do João, de lágrima nos olhos, me segredava: Estamos sós. Cada vez
mais só.
Aquele instante caiu-me no coração como flecha que deixa marca e domina-me
o pensamento. Faz-me pensar noutros passos, pessoas e circunstâncias que de
igual forma me magoam e fazem pensar nas muitas pessoas que ao longo de uma
parte da vida se cruzaram comigo e subitamente perderam o meu contacto telefónico.
Preocupa-me este modo de ser e estar e na busca incessante por uma
explicação que atenue a minha dúvida lembro um poema de Vinícius de Morais sobre
a Amizade que evoca a singularidade do Ser.
Esse bicho, tantas vezes incompreendido!
E diz assim:
(…) Um Bicho igual a mim
Simples e humano
Sabendo-se mover
E comover
E a disfarçar com o meu (seu) próprio engano.
Seja como for o importante é constatarmos que ao longo da caminhada
nos fomos cruzando com outros bichos, às vezes ingénuos, capazes de acreditar
que o verbo pode dar lugar ao gesto.
Querido João e Mariette, nós - os Gabriel de Matos - estamos sempre
aqui para continuar a mimar-vos com um sorriso franco e farto ou com as couves
da Tapada do Caldudo que desta vez ficaram no Fundão.
“Foi pena que assim tenha
acontecido, pois quando te vi entrar logo pensei em cozinhar as couves do
Fundão”, disse o João que gosta de enviar flores e postais, ainda escreve
cartas e muitas vezes brinda a minha Leonor com o desenho, postal ou fotografia
de um golfinho.
Sim o João adora fotografia e ao longo da vida tirou-me muitas das fotografias que hoje enriquecem o baú da memória.
Obrigada João!
Sim o João adora fotografia e ao longo da vida tirou-me muitas das fotografias que hoje enriquecem o baú da memória.
Obrigada João!
sexta-feira, setembro 23, 2016
After Eight na Quinta
Iniciar a manhã numa visita à Quinta Pedagógica do Fundão, quando ainda
está fresquinho e as temperaturas de um primeiro dia de Outono traduzem a
mansidão do tempo pode ser mais que isso.
Os olhos fixam-se no jardim das ervas aromáticas mas rapidamente se
desconcentram.
O olfato saboreia um estranho mas intensamente fresco cheiro a
hortelã chocolate.
Lembra-se do sabor dos after eight?
É muito mais intenso.
Observamos a paisagem e nem queremos acreditar que a Quinta
Pedagógica do Fundão fica mesmo no sopé da Gardunha. Não tarda o verde, que torna fresco o postal do Fundão, dará
lugar a uma enriquecedora paleta de cores castanhas, amareladas e laranja...
A beleza da Quinta, que a Misericórdia do Fundão em boa hora abriu na
capital da cereja ,ganha ainda mais vigor com as vistas de um horizonte dourado
e poderosamente inspirador.
Inspiradoras são as visitas à Quinta. Ao que sei o espaço é bastante
procurado por estabelecimentos de ensino de todo o país. Mas é também um
laboratório de experiências ao ar livre para as crianças das escolas do Fundão
e do jardim-de-infância da Santa Casa da Misericórdia.
Dizem-me que por estas bandas também há dinâmicas para os mais velhos. Até
quem tem dificuldades de locomoção se diverte neste paraíso entre a Gardunha e
a cidade do Fundão. E na quinta revivem as práticas do oficio que outrora os ocupou nos campos da Beira.
Na manhã em que estive na Quinta Pedagógica do Fundão a mesma estava a ser
visitada por dezenas de crianças que ora se divertiam com as histórias à volta
da vida animal, ora andavam de burro ou apanhavam chás e ervas aromáticas.
Num ambiente natural e de constante contacto com a terra, o visitante é
convidado a descobrir as culturas e a fruta da época. As aves e outros vivos que
dão cor e vida à Quinta.
Foi nesse instante de alegria e descoberta que também eu descobri o cheiro
da hortelã chocolate. O perfume agarrou-se às mãos. O cheiro entrou-me pelo nariz e alojou-se na garganta.
E eis que me ocorre cantarolar aquela canção da Viviane e diz assim:
Esse perfume me persegue...quente, forte e subtil
Passeia por mim livremente...como se fosse gentil
Se me aparece de repente...inspiro-o profundamente
Para desvendá-lo, para decifrá-lo, queria agarrá-lo...
Queria agarrá-lo, metê-lo no meu frasco, fechá-lo bem p'ra não
fugir...
Mas ele insiste, ele insiste...
brinca comigo devagar
Leva-me à minha memória...
convida-me a divagar
Queria agarrá-lo, metê-lo no meu frasco, fechá-lo bem p'ra não
fugir...
P'ra não fugir... https://www.youtube.com/watch?v=88RlFTCuGrY
P'ra não fugir...
terça-feira, maio 03, 2016
Festival Literário da Gardunha
Mais de 25 escritores de diferentes gerações e países, vão marcar presença na terceira edição do Festival Literário da Gardunha (FLG) que se realiza no concelho do Fundão de 16 a 22 de maio.
A programação do FLG prevê a realização de várias dinâmicas com escritores estando prevista a realização de outras atividades culturais. É o caso do lançamento do livro "O Caroço" de Albano Martins. Ou a inauguração de uma exposição fotográfica de Diamantino Gonçalves. Ponto alto da programação será o espetáculo "Fado Revisitado" com Camané e Mário Laginha agendado para dia 21 no Octógono.
Do programa constam não só as conversas e mesas redondas com os escritores convidados, como duas residências literárias, dois encontros com alunos, uma feira do livro, uma projeção cinematográfica, e ainda “workshops”.
O festival organizado pela Câmara Municipal do Fundão e A23 Edições tem a serra da Gardunha como fonte de inspiração para a temática do evento. "Escrever a Paisagem".
A promoção das relações ibéricas e internacionais, o encontro entre escritores consagrados e mais jovens e ainda a integração de escritores oriundos da região são outras das marcas que caracterizam o FLG.
Este ano, os encontros literários com a Gardunha permitirão ainda uma abordagem aos países lusófonos de Angola e Moçambique. Está garantida a representação de escritores angolanos e de um escritor moçambicano.
A relação com a comunidade local é outra das particularidades do FLG estando garantida a participação dos escritores Gonçalo M. Tavares e Dulce Maria Cardoso na realização das residências literárias e a deslocação a escolas do concelho do Fundão.
Entre os que já confirmam presença estão César Antonio Molina (escritor ensaísta e antigo ministro da Cultura em Espanha, a quem caberá a sessão de abertura), Adriana Veríssimo Serrão, Clara Ferreira Alves, Cristina Carvalho, Eduardo Pitta, Fernando Dacosta, Fernando Echevarría, Fernando Guimarães, Pedro Mexia, Mário Zambujal ou Marcello Duarte Mathias e Mbate Pedro.
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