sexta-feira, dezembro 21, 2018

No Reinado de Vales de Pêro Viseu


Uma promessa para prevenir uma praga ligada ao olival é o mote para uma tradição centenária que “não deve ser massificada” mas que traduz a forma como gerações de naturais de Vales de Pêro Viseu se dedicam à memória que “importa perpetuar”.


António Henriques Duarte tem 98 anos, é provavelmente o mais antigo habitante de Pêro Viseu e lembra-se desde sempre do Reinado. Uma tradição de Natal que se repete a cada dia 25 de dezembro na anexa da freguesia. Depois da hora de almoço, no dia de Natal, o largo em frente à capela de São Bartolomeu em Vales de Pêro Viseu ganha vida pois as pessoas daquela aldeia concentram-se à volta do que resta da fogueira da noite de consoada e ali degustam as filhoses oferecidas pelos mordomos que no ano anterior foram escolhidos para manter a tradição do Reinado.

“Uma tradição genuína que valoriza a nossa terra no período do Natal” descreve o autarca local. Para Pedro Mesquita “o mais importante é honrarmos a memória de todos os que já contribuíram para a realização desta tradição e incutir nos mais novos a autenticidade da mesma”. O Reinado assume-se, por isso, como um momento de confraternização entre pessoas de todas as idades que gostam da partilha e preservação das tradições locais. E os locais têm uma vaga memória da origem da festa. Há até quem afirme que num ano em que não promoveram o Reinado, “a aldeia ficou cheia de uma praga de bichos que queimou as folhas das oliveiras”. “As folhas estavam todas cruzadas”, contou ao Jornal do Fundão Ana Milheiro, natural de Vales de Pêro Viseu.
João Marçalo é desde há quatro anos sacerdote naquela paróquia e além de corroborar a estória da septuagenária Ana Milheiro enquadrou a tradição: “Nasceu associada a uma outra tradição das festas de São Sebastião e tem a ver com questões de pestes, estando muito ligada à crença das pessoas que neste caso não é o São Sebastião – como acontece em Janeiro de Cima ou na Póvoa de Atalaia, só para citar algumas - mas sim ao Santo Estevão”. “Houve uma peste que afetou as oliveiras que começaram a deixar de dar azeitona e junto à capela criou-se uma praga. E foi então que, de forma coletiva fizeram a promessa de todos os anos no dia de Natal realizarem um momento de oração”. Seguem-se a prova das filhoses e a “eleição” dos novos mordomos, uma procissão à volta da capela e beija-se o Menino Jesus. Esta não é a única tradição de Natal na Pêro Viseu. Além do madeiro, no dia 24, desde 2013 que na freguesia se realiza um mercado de Natal. É sempre no segundo fim-de-semana de dezembro.


* Texto originalmente publicado na edição de 20 de dezembro do Jornal do Fundão

quinta-feira, dezembro 13, 2018

Do Agasalho à Tecnologia


Apaixonou designers e criativos. É muito mais que um agasalho. Habitualmente utilizado na decoração de interiores e mobiliário, o produto serrano é também matéria-prima para sapatos e ferramentas tecnológicas. A Microsoft, esse gigante da informática, rendeu-se às características do tecido tradicional que agora “agasalha” os tablets. 



À descoberta do burel. Poderia ser este o título do texto no qual nos propomos partilhar com os leitores o percurso de inovação que caracteriza o tecido artesanal português totalmente feito de lã. “Depois de carmeada e cardada, a lã transforma-se em mecha. A mecha é torcida na fiação e transforma-se em fio. O mesmo se passa pela urdideira originando a teia. O tear transforma a teia em xerga. A xerga passa pelo batano e por outros tratos e transforma-se finalmente em burel”. Explicações plasmadas numa folha de sala dedicada a trabalhos em burel.

Já as características técnicas e diferenciadoras do tecido “resistente e versátil” conferem ao burel mais que a garantia de aconchego. As experiências à volta da sua textura, padrões e cores transformam-no numa panóplia de oportunidades e peças diferenciadoras que enriquecem o portefólio criativo de quem desejava afirmar-se na decoração de interiores e na valorização de algo que para muitos não passava de um tecido grosseiro e rústico apenas utilizado pelos pastores.

Cabeceiras de cama, painéis de parede, quadros, corredores de mesa, capas de almofadas e uma multiplicidade de peças utilitárias são hoje uma realidade na utilização do burel. E até já há sapatos e ténis em burel! No ano passado uns ténis feitos com burel e produzidos pela Burel Factory, uma empresa de Manteigas, receberam um prémio de inovação, numa das maiores feiras mundiais de desporto, em Munique, na Alemanha.

Também em Manteigas, a Burel Factory, começou em 2013 a “vestir” o tablet PC da Microsoft. Nessa altura o Jornal de Negócios escrevia que o burel renasceu em Manteigas, para "aquecer" o mundo.

Ainda em Manteigas nasceu em 2017 a marca de sapatos REALIS. Cada par transporta em si a lã “cem por cento de ovelha” e a garantia de “resistência à humidade e repelência à água”. Bruno Silva e Marlene Gabriel são os empreendedores. Procuraram investir na criação de um produto que tivesse a sua génese no território em que habitam, que ainda tivesse pouca expressão no mercado e utilizasse matérias-primas locais, neste caso o burel originário da região. “Podemos dizer que o burel se comporta de alguma forma como uma membrana sintética de gore-tex, mas de uma forma natural”, explicaram ao JF. 



Prevê-se que a marca desenvolva novos projetos em 2019, nomeadamente na captação de novos mercados na Europa e em termos de criação “iremos lançar novos modelos de senhora e lançar a coleção de homem”. Para já os sapatos Realis são usados “por alguém famoso mas não devemos revelar o nome”.

Mas nem só a norte se reinventa o burel. O criador de moda Miguel Gigante, foi pioneiro nessa arte. A partir do “Atelier do Burel” instalado na antiga fábrica António Estrela na Covilhã e hoje transformada no laboratório criativo “New and Lab”, Gigante transforma o burel em casacos, coberturas de mobiliário, candeeiros, malas, almofadas, alfinetes de lapela e chapéus.

“Iniciei o projeto em Setembro de 2008, mostrei pela primeira vez as primeiras peças no Chocalhos - Festival Caminhos da Transumância em Alpedrinha. Tinha tudo a ver, celebrar a transumância”, descreve o artista capaz de transportar para as suas peças a “essência e alma femininas”, dizem os apreciadores de moda que se habituaram a ver Miguel Gigante como um visionário na arte de dar nova vida à lã das ovelhas. O artista começou por fazer painéis, candeeiros, almofadas alguns acessórios e um casaco.



“Cansado da confeção e de trabalhar a moda” Miguel Gigante deixou-se envolver na descoberta e conceção de obras  para casa. “Ironicamente a peça que teve um sucesso considerável foi o casaco ainda hoje é uma peça desejada pelo mercado”, confessa-nos.

“Sempre gostei mais de criar peças de Outono-Inverno. Inicialmente, fazia experiências, protótipos sem qualquer tipo de pressão”, conta-nos. Para Miguel Gigante o que distingue o burel de outros tecidos é a própria “construção técnica e os princípios que sendo a antítese da indústria atual são a garantia de padrões de qualidade cada vez mais raros”. “A resistência e impermeabilidade são os mais conhecidos, o isolamento de som e temperatura também são fatores de valor”.

Numa avaliação à relação qualidade preço na escolha de uma peça em burel em  detrimento de outros tecidos, Gigante lembra o “composto só de lã bordaleira” enquanto garantia de “proteção do frio e o conforto” de um tecido 100% natural. Características “cada vez menos comuns na confeção tradicional três vezes mais cara e com menos durabilidade”, adverte.

A partir da Covilhã, Miguel Gigante pretende continuar a afirmar um produto que identifica um território e que em 2013 lhe valeu a assinatura de peças no âmbito do projeto Aldeias Históricas de Portugal. “Uma coleção de roupa inspirada na arquitetura, lendas e tradições dos tempos medievais e composta por casacos, saia, camisolas e acessórios diversos”. Detentor de uma carteira de clientes espalhados pela Europa, Miguel Gigante apresenta regularmente as suas peças em eventos ou em lojas que vivem do mercado turístico.

Ana Gonçalo é designer têxtil há vinte anos mas só há quatro anos, a partir do CINCO atelier, iniciou a experiência no burel. “A minha primeira peça foi uma clutch. Foi o modelo que mais me motivou. Como nunca tinha trabalhado com esse tecido, foi um desafio enorme”, partilhou com o JF a designer que há uns anos esteve em foco por ter concebido a nova linguagem e imagem de marca da Covilhã. “A Tecer o Futuro”, Ana Gonçalo coloca em cada peça que faz um pouco de si. Motiva-se sobremaneira de cada vez que dá corpo a uma nova “carteira de ombro que, além do trabalho de modelação e costura, tem bordados em fio de lã e crochet no mesmo fio”. “Eu gosto de misturar técnicas, tornando a peça mais rica e apelativa. 

O burel é um tecido que tem bastante corpo, tornando o processo de modelação das peças bastante motivante. Como é um material denso que foi "batanado", conferindo propriedades de feltro, ele não desfia nas extremidades, quando cortado”. E isso permite-lhe "pensar" nas peças com maior ambição. Mas desengane-se quem pensa que construir uma peça de burel é fácil! 

“É um tecido muito espesso, difícil de costurar peças complexas...antes de pensar na peça que quero realizar tenho de pensar muito bem e testar algumas costuras e moldes”, revela-nos. Considerando que a lã de ovelha é incomparavelmente mais valiosa que um qualquer outra matéria-prima sintética, Ana Gonçalo congratula-se por observar como o burel, de tão valorizado e cheio de possibilidades, devolveu emprego a muitas pessoas que assistiram à crise dos lanifícios.

Da Covilhã para o Fundão encontramos o “Adelma Atelier”. Desenvolvido por Lina Ferreira, o projeto de aproveitamento e transformação do burel teve início há quatro anos e as primeiras criações foram das a conhecer ao público na 5ª edição do "Pechakucha", exatamente no Fundão.


Ao JF a criativa fala do empenho e dedicação que coloca em cada peça que produz. Apreciadora de tudo o que seja português, genuíno e icónico,  Lina Ferreira diz que “não poderia deixar de usar o burel” nas suas coleções. Apesar do ainda curto percurso, Lina Ferreira orgulha-se do prémio “melhor peça de artesanato”, conquistado na edição de 2014 do Festival chocalhos. “Um prémio e reconhecimento do júri que avalio um casaco comprido confecionado em burel, lã bordaleira e tecido de cortiça”.  



Além do vestuário, o burel está presente nos acessórios de moda e algumas peças decorativas como mantas, tapetes e almofadas, assinados por Lina Ferreira. No entanto e na área da decoração o burel permite desenvolver “ambientes rústicos e acolhedores”, considerou.
O “Adelma Atelier” no Centro Comercial Cidade Nova, no Fundão, dispõe de algumas peças no Hotel H2O em Unhais da Serra.

Texto originalmente publicado na edição de 6 de dezembro de 2018 do Jornal do Fundão.

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