quarta-feira, novembro 16, 2016

Em Memória de um Guardião

Quando nos despedimos de um fiel depositário da memória sentimos nostalgia mas também insegurança e fragilidade.
Ontem partiu um guardião da memória e das boas práticas das Obras de Misericórdia. Um homem com um enorme sentido de responsabilidade e apego às causas e dores de uma das mais nobres instituições do Fundão.
Eurico Ramos, irmão da Misericórdia do Fundão desde novembro de 1971. 


Conheci-o há muitos anos. Poderei dizer que o percurso do irmão e dirigente da Santa Casa da Misericórdia do Fundão se cruzou com o da jornalista em mais de duas décadas. Eurico Ramos era um homem cordial e compreensivo.
Mesmo em tempo de "guerras" e dificuldades de maior nunca lhe ouvi uma resposta torta ou uma observação menos própria, narrativa tão comum quando o jornalista quer ir além do óbvio.
Quis o destino que um dia me cruzasse e privasse com o senhor Eurico Ramos numa outra condição. A de colaboradora da Instituição onde Eurico Ramos era dirigente.
Foi durante este tempo que me dei conta de como Eurico Ramos nos observava sem qualquer tipo de sobranceria. Não havia dia, enquanto a saúde lhe o permitiu, que não viesse à Misericórdia deixar um sorriso e demonstrar inequívocos sinais de empenho e dedicação à organização onde esteve ligado mais de quarenta anos.
Ouvi na Rádio uma declaração pública do Provedor da Santa Casa em que Jorge Gaspar manifestava sentido pesar pela perda de um dos mais empenhados e abnegados irmãos da Misericórdia do Fundão. Uma observação perfeita e bem ilustrativa sobre alguém que de forma zelosa cuidava da memória, das tradições e do culto da Santa Casa.  Uma realidade que pude constatar nos anos em que apreendi um bocadinho da experiência de Eurico Ramos na construção e caminhada de cada uma das edições da Semana Santa no Fundão. Um dos mais respeitosos e enriquecedores momentos anuais da vida da Santa Casa começava a ser preparado muitas semanas antes. Eurico Ramos ficava dias agarrado ao telefone e estabelecia contatos, construía pontes e envolvia a comunidade nas tradições Quaresmais. Também no âmbito do culto e das obrigações da Irmandade, plasmadas no livro do Compromissso da Santa Casa, Eurico Ramos recordava com entusiasmo os antepassados da visita dos irmãos aos doentes. Ajudava a identificar as campas dos irmãos falecidos e dava sempre o seu contributo no sentido de nos esclarecer, aos mais jovens colaboradores da Misericórdia, como deveríamos agarrar as situações e proteger a memória coletiva.
Depois, havia o Museu e uma quase ligação umbilical à geografia e história secular da instituição. Os cortejos de oferendas para a construção do hospital do Fundão. Tantas memórias! Tanto saber acumulado. Um dia escrevi que Eurico Ramos era o Guardador de Memórias. De facto a Santa Casa do Fundão e os seus colaboradores estão mais pobres com a partida do fiel depositário da história da Misericórdia. 





quarta-feira, setembro 28, 2016

Guardiões do Pintor

Os Traços de união do pintor das paisagens da Gardunha e da Raia também conhecido como pintor doa afectos fizeram-se ouvir numa tertúlia à volta da vida e obra de Barata Moura.


Foi há dias numa sessão integrada nas Jornadas Europeias do Património que também aconteceram no Fundão, um dos territórios da geografia de afectos do pintor falecido em dezembro de 2011. Meses depois de uma comunidade inteira ter festejado o centenário do artista que sempre engrandeceu os Bombeiros Voluntários do Fundão e todas as organizações e pessoas que no percurso de homem bom se cruzaram com o artista.

Barata Moura costumava ficar com os olhos rasos de água e às vezes quando falava do seu Fundão o olhar também se iluminava. 

Quase cinco anos depois do desaparecimento do pintor das paisagens e pelourinhos da Beira Baixa, o Museu Arqueológico Municipal do Fundão  juntou alguns amigos e conhecedores da obra que é uma espécie de puzzle ou traço de união entre territórios da Beira Baixa, região que muito enriquece as muitas dezenas de quadros espalhados por aldeias e cidades da região.

São essas obras que daqui a algum tempo poderão ficar reunidas num espaço museológico que Castelo Novo reclama e que, a fazer fé nas intenções e promessas autárquicas, será uma realidade.

Na mesa-redonda dedicada a Barata Moura merece especial ênfase a intervenção de Silva Amaro, o pintor cujo ofício descobriu inspirando-se no “Mestre Barata Moura”. "Não escondo que Barata Moura foi determinante na minha carreira de pintor. Os meus quadros pretendem homenagear e respeitar a memória de um homem bastante generoso. Um homem de palavra. Coisa rara nos tempos que correm", disse Silva Amaro.


domingo, setembro 25, 2016

Encontro com D.Dinis

As "Muralhas com História" da aldeia histórica de Sortelha no concelho do Sabugal receberam por estes dias uma centena de figurantes que, com um verdadeiro espírito trovadoresco, permitiram aos visitantes recuar aos séculos XIII e XIV.
Aconteceu na edição VI da Feira Medieval organizada pelo município local e cujo mote foi exactamente a história que se esconde na muralhada e bela Sortelha.
E foi uma feira bastante rica em cenários e encenação e cujos figurantes, decoração das casas e tascas temáticas nos transportaram para as vivências da época.
Entrar na aldeia muralhada e darmos-nos conta da explosão de vida e animação sem esquecer Dom Dinis, Rei Trovador e Lavrador é mais que uma viagem à já de si ímpar e imponente Sortelha. 

Há festas e festas e por estas bandas não faltam municípios a recorrer à criatividade da vizinhança para se lançarem em hipotéticas inovações que mais cedo ou mais tarde se esgotam ou passam a ser ponto de encontro para comes e bebes ou discotecas ao ar livre.
 Saibamos então, pelo menos,  tirar partido da essência e beber todo o processo criativo. Uma vez apreendida a metodologia de trabalho  tornar-se-à mais fácil fazer mais e melhor.
E em Sortelha faz-se bem! 

É salutar quando o passeio  nos garante que demos por bem empregue as horas passadas no contacto com locais e transeuntes. Gente de todo o lado, espanhóis também, satisfeita com a as recriações históricas,  mercado da época, tabernas, animação, torneios a cavalo, demonstrações de artes e ofícios. 
A concretização de um acampamento militar, os jogos medievais e os espetáculos de qualidade como os Galandum Galundaina ,https://www.youtube.com/watch?v=O8HQb8FAWQM, são bem demonstrativos de como havendo estratégia e inovação se torna mais fácil recriar com êxito.

Foi bonita a festa pá!

sexta-feira, setembro 23, 2016

After Eight na Quinta


Iniciar a manhã numa visita à Quinta Pedagógica do Fundão, quando ainda está fresquinho e as temperaturas de um primeiro dia de Outono traduzem a mansidão do tempo pode ser mais que isso.

Os olhos fixam-se no jardim das ervas aromáticas mas rapidamente se desconcentram. 
O olfato saboreia um estranho mas intensamente fresco cheiro a hortelã chocolate.

Lembra-se do sabor dos after eight? 
É muito mais intenso.

Observamos a paisagem e nem queremos acreditar que a Quinta Pedagógica do Fundão fica mesmo no sopé da Gardunha. Não tarda o verde, que torna fresco o postal do Fundão, dará lugar a uma enriquecedora paleta de cores castanhas, amareladas e laranja...

A beleza da Quinta, que a Misericórdia do Fundão em boa hora abriu na capital da cereja ,ganha ainda mais vigor com as vistas de um horizonte dourado e poderosamente inspirador.

Inspiradoras são as visitas à Quinta. Ao que sei o espaço é bastante procurado por estabelecimentos de ensino de todo o país. Mas é também um laboratório de experiências ao ar livre para as crianças das escolas do Fundão e do jardim-de-infância da Santa Casa da Misericórdia.

Dizem-me que por estas bandas também há dinâmicas para os mais velhos. Até quem tem dificuldades de locomoção se diverte neste paraíso entre a Gardunha e a cidade do Fundão. E na quinta revivem as práticas do oficio que outrora os ocupou nos campos da Beira.

Na manhã em que estive na Quinta Pedagógica do Fundão a mesma estava a ser visitada por dezenas de crianças que ora se divertiam com as histórias à volta da vida animal, ora andavam de burro ou apanhavam chás e ervas aromáticas.

Num ambiente natural e de constante contacto com a terra, o visitante é convidado a descobrir as culturas e a fruta da época. As aves e outros vivos que dão cor e vida à Quinta.

Foi nesse instante de alegria e descoberta que também eu descobri o cheiro da hortelã chocolate. O perfume agarrou-se às mãos. O cheiro entrou-me pelo nariz e alojou-se na garganta.

E eis que me ocorre cantarolar aquela canção da Viviane  e diz assim:

Esse perfume me persegue...quente, forte e subtil
Passeia por mim livremente...como se fosse gentil
Se me aparece de repente...inspiro-o profundamente

Para desvendá-lo, para decifrá-lo, queria agarrá-lo...
Queria agarrá-lo, metê-lo no meu frasco, fechá-lo bem p'ra não fugir...

Mas ele insiste, ele insiste...
brinca comigo devagar

Leva-me à minha memória...
convida-me a divagar
Queria agarrá-lo, metê-lo no meu frasco, fechá-lo bem p'ra não fugir...
P'ra não fugir... 
https://www.youtube.com/watch?v=88RlFTCuGrY

terça-feira, agosto 09, 2016

ESTE – A Companhia que não vai de férias

Já perdi a conta ao número de edições do Teatro_Agosto - Festival Internacional de Teatro ao Ar Livre que se realiza no Fundão no mês em que o país para e toda a gente se abeira da frescura do mar.

Quando nasceu, o Teatro_Agosto,  foi encarado pelos mais céticos como uma aposta cultural a prazo. Mesmo no meio cultural poucos acreditavam que a qualidade dos espetáculos de teatro, música e as master classes fossem suficientemente atraentes para afirmar a programação milimetricamente pensada pela ESTE- Estação Teatral.

Enganaram-se! 

O Teatro_Agosto está aí para continuar a afirmar o Fundão como cidade de pequena dimensão mas cheia de pujança em oferta cultural.

Uma noite destas, numa daquelas conversas para socializar e atualizar a informação que não entra na rotina das partilhas, foi encantador observar o brilhozinho no olhar do Alexandre Barata - a par do Nuno Pino Custódio, é alma da ESTE - quando partilhava, orgulhoso, o programa do Festival que se inicia no dia 19 de agosto.

De facto a companhia de teatro que resiste à falta de uma sede social e se adapta a novos constrangimentos só pode orgulhar-se do percurso. Não estarei enganada se sublinhar os mais de dez anos de um percurso artístico que centrou o Fundão no mapa da oferta de teatro e deu a esta cidade um lugar cimeiro na programação cultural de Verão.

Enquanto o país se reúne a sul e se envolve no turismo de massas, nós por cá acolhemos um senhor Festival.


E a programação promete! 

22 espetáculos de música, teatro, ilusionismo, cinema e animação de rua. 
A animação pelas ruas da cidade irá, aliás, enriquecer um outro evento cultural (O Cale) que arranca já nos próximos dias. 

Na componente cinematográfica o Teatro_ Agosto permitirá observar várias curtas-metragens produzidas e realizadas por estudantes de cinema da Universidade da Beira Interior.  

A apresentação (dia 25 de agosto) da peça “Bamba Vamba Wamba”, que a ESTE estreou recentemente, será um dos momentos do Festival que volta a trazer ao Fundão o consagrado ator internacional Leo Bassi. 
Além de apresentar (dia 28 de agosto) “the best of Bassi”, Leo Bassi será responsável pela realização de uma master classe “que está esgotada desde a primeira hora”, dizia-me Alexandre Barata. 

Atenção redobrada merecerá, estou segura, a apresentação (dia 21 de agosto) de “Lullaby”  por Cão à Chuva com Rui Paixão que fará parte do elenco da nova vaga de representações do afamado Cirque du Soleil. 
Ao todo serão dez dias de espetáculos cujo epicentro será a Moagem-Cidade do Engenho e das Artes no Fundão mas com extensões no Alcaide e Silvares (Fundão) e em Castelo Branco. Consulte a programação http://esteteatro.com/page/teatroagosto-2016


segunda-feira, agosto 01, 2016

Quando a Música é uma Brisa de Verão

Terminou mais uma edição do Festival de Música Antiga de Castelo Novo. Um evento diferenciador que em boa hora  Vítor Martins e Pedro Rafael Costa trouxeram para a Aldeia Histórica do concelho do Fundão. A concepção e produção do Festival é assinada pelo Município do Fundão.

É uma ideia muito feliz. Espero que se repita por muitos Verões, estações, momentos e ocasiões.

Às vezes, muitas vezes, bastam as conversas - de preferência se forem como as cerejas - para fazer acontecer e romper com a monotonia dos dias.

Encravada na encosta da Gardunha, Castelo Novo é uma dessas raras jóias do Património da nossa Beira e do país do bom sol e das tradições que nunca morrem. Mas essa geografia nem sempre é suficiente para concretizar sonhos e fazer da vontade uma narrativa com final feliz.
Felizmente há os entusiastas. Homens e mulheres capazes de arregaçar as mangas, bater a todas as portas e fazer acontecer.

O Festival de Música Antiga de Castelo Novo vai na IV edição. Penitencio-me por ter demorado tanto tempo a observá-lo e a deixar-me voar pela sonoridades dos séculos XVI, XVII e XVIII.

Desta vez consegui dizer presente.  Não posso deixar de parabenizar Vítor Martins, um ilustre cidadão de Castelo Novo, e Pedro Rafael Costa, um homem da rádio que se rendeu a Castelo Novo (quem não se rende?) e que com a ajuda do Município do Fundão e da Rede de Aldeias Históricas de Portugal conseguiram realizar "Ventos Nocturnos"

O nome do Festival não poderia ser mais bem escolhido pois as noites imensamente quentes requerem uma brisa e algo que nos faça despertar os sentidos e viajar....viajar...até onde a mente alcança.

O Festival de Música Antiga de Castelo Novo que levou àquela aldeia a soprano Ana Paula Russo e a mezzo soprano e criativa cantora de música antiga Maria Jonas foi essa lufada de ar fresco com sabor a banho refrescante de cultura. 

Aquele espetáculo da dança barroca que nos transportou para a obra de Sebastian Bach foi excepcional. 
A abertura "com chave de ouro" do Festival aconteceu  no jardim da Quinta do Alardo. Um espaço emblemático da freguesia. Um belíssimo jardim onde ainda é possível observar o património da Quinta do Alardo. Era de noite e não se viam as flores mas os cedros e as marcas de um jardim romântico acrescentaram beleza à Suite Orquestral majestosamente dançada  por um corpo de bailarinos (as) cuja a coreografia foi assinada por Isabel Gonzaga.

O segundo espetáculo a que assisti foi igualmente belo e diferenciador. Aquela viagem sonora e visual ao universo medieval e as cantigas de amigo interpretadas pela Maria Jonas acompanhada pela percussão, guiterne e flautas transversais foi encantadora.

Nota ainda para as explicações prévias de cada espetáculo, um enquadramento histórico notável que ajuda a formar públicos e nos transporta para um tempo e um espaço quantas vezes inimagináveis mas que nos aguçam o apetite para uma nova jornada de descoberta da música e da riqueza dos nossos antepassados.

O Festival de Música Antiga foi, pois,  uma intensa e introspectiva brisa de Verão. 
Venha o próximo e que na próxima edição consigamos cativar mais jovens por forma a que também eles possam observar a história muito para além dos bancos da escola ou da faculdade.

Obrigada pela cumplicidade!


segunda-feira, julho 25, 2016

Uma senhora Malha

Sobral de São Miguel, concelho da Covilhã, já não é só praia fluvial e xisto.
O Sobral também é saber fazer e recriar.

Este dia fui convocada para observar o Xistrilhos - iniciativa de Verão para animar a freguesia que faz parte da Rede das Aldeias do Xisto de Portugal. Disseram-me que logo pela manhã haveria uma caminhada serra acima e com direito a observar a frescura das paisagens encravadas nas serranias.

Mas o que me despertou os sentidos foi a realização da malha do trigo.
Tarefa árdua que só os mais afoitos conseguem concretizar mas que cedo mobilizou uma povoação inteira!

Preparar a malha parece coisa do antigamente, mas no Sobral não há quem não se empenhe a fundo na recriação de uma das dinâmicas associadas à etnografia da Beira e aos trabalhos no campo.
Seja por a malha estar bastante enraizada naquele povo, seja por a Junta de Freguesia local estar empenhada em dar visibilidade às suas origens e tradições, a verdade é que ninguém faltou ao encontro.

E muitos vestiram-se a rigor. Que é como quem diz, foram ao guarda-roupa procurar os trajes mais típicos do trabalho no campo. Roupas antigas que tapam o frio e o calor como me explicaram alguns dos participantes.

Associado à realização da malha do pão estão os petiscos regionais. Na malha do Sobral de São Miguel não faltou o bolo a escorrer mel (miaus) nem a sangria feita à base de vinho tinto fresco com água e açucar ( champorrião). Um e outro são deliciosos , diga-se,  e constituíram a "bucha" para alimentar a barriga aos homens e mulheres que naquela manhã elevaram o mangual (mongalo) para retirar os grãos de trigo.

A eira estava repleta de gente para observar a dança do mangual e a cadência das batidas. Era imperioso registar o momento. As novas tecnologias e ferramentas de comunicação assim o determinam. Naquele sábado de julho, debaixo de um calor abrasador, muitos gravaram vídeos e
registaram o momento histórico para a freguesia que pretende ter maior visibilidade no mapa das Aldeias do Xisto.

E se o ditado diz que querer é poder, estou certa de que a autarca local (Sandra Ferreira) não deixará de esgrimir argumentos e elevar o discurso reivindicativo por forma a que Sobral passe a estar no mapa.

Não basta o esforço e empenho de uma povoação inteira. Não basta a sinalética que já se encontra nas imediações da freguesia. É preciso estendê-la às grandes vias de comunicação. Importa ainda incentivar os agentes locais e organizações institucionais a investir no Sobral.
Nessa altura haverá mais que um alojamento local, mais que o evento anual (Xistrilhos), mais que entrega de quem ali resiste e acredita no futuro da localidade encravada nas serras.


Eugénio de Andrade o poeta maior

 Fui à Póvoa. À terra do poeta nascido há uma centena de anos. Encontrei memória falada, orgulho e expetativa quanto à importância de Póvoa ...