No dia em que toda a gente
caminhava para o cemitério subi à Gardunha. A viagem iniciou-se exatamente à
porta do cemitério da minha aldeia Natal. Sim, essa terra onde o silêncio geral
denota o despovoamento agravado pelos incêndios que deixaram um rasto de
destruição e um chão vincadamente negro.
No hora em que o povo
descia desde a igreja até à zona baixa de Castelo Novo para ali prestar
homenagem aos que jazem no cemitério localizado no sopé da Gardunha, contrariei
a tradição, dispensei o momento de oração e silêncio coletivos para mergulhar
numa outra geografia, igualmente marcada por um silêncio sepulcral.
Serra acima, numa manhã
sombria de novembro e a ameaçar chuva, dei-me conta do vasto cenário carregado
de negro.
À primeira paragem, já
fora do carro e sem o som da música ambiente, os meus ouvidos fizerem um
esforço maior para identificar o chilrear de um melro, um pássaro ou um
milhafre ávido de galinhas das capoeiras localizadas nos campos da Gardunha.
Porém as quintas, que foram
resistindo à desertificação do território, estão agora reduzidas a cinza e as
galinhas ou outros vivos que por lá existiram finaram-se em agosto último.
Assim terá acontecido com
as raposas e os coelhos que já se passeavam pela serra e certamente sucumbiram
ao calor do inferno das chamas.
É então que a viajante se
dá conta do silêncio continuado que a acompanha desde o cemitério de silêncios.
Esse lugar onde habitam os nossos entes queridos e que naquele dia de agosto também terão sentido o inferno do fogo. O bafejar da chama sobre as campas que compõem o "povoado" desse
lugar de invariável confluência anual no Dia dos Santos.
O poder do silêncio do
cemitério foi de tal forma poderoso que a demorada paragem no outrora
paradisíaco lugar da Casa Florestal de Castelo Novo se traduziu em calafrios. A
viajante sentiu uma pontinha de medo quanto à ausência de um único barulho. Nem
um ruído! Uma folha a cair, a serpentear de um lugar para o outro... Até as pinhas estavam todas no chão!
Não se ouvia uma mosca. Nem
havia sinais de vivalma. A água escasseia e não encharca os terrenos à volta do
tanque que se apresentava quase vazio.
Da bica corre um fio do precioso líquido
e nem me atrevo a bebê-la pois os incêndios foram há pouco tempo e as chuvas
ainda não apaziguaram o manto de cinzas.
São tantos os sinais a adensar
o cemitério de silêncios que até as lágrimas do viajante secaram. A descrença
tolhe-nos o olhar e na alma lembra-nos que quase nada nos prende áquele lugar.
O fogo de há dois meses e
meio levou outra vez o verde da Gardunha e agora a viajante só consegue
identificar os lugares onde tantas pessoas foram felizes!
Embora a Casa Florestal de
Castelo Novo permaneça intacta, aquela geografia é, também ela, um cemitério de
silêncios. Desapareceu tudo!
Os mosquitos, as moscas,
as aves, as raposas e os coelhos.
As árvores que já estavam
a reerguer-se, depois do fogo de há doze anos, também pereceram e delas restam
apenas pequenos troncos dos quais haverá de rebentar uma nova planta.
Uma
renovada réstia de fé num amanhã outra vez verdejante e esplendorosamente belo.
Mas nessa altura a
viajante e os amantes da Gardunha continuarão a questionar-se quanto ao
abandono a que está votada a Casa Florestal.
Consequentemente lamentarão o
avanço da degradação do imóvel onde permanecem os azulejos com letras azuis
escuras a dizer “Matas Nacionais”.
Elegantes e com letras bem
definidas, os azulejos (felizmente a mão alheia não os roubou!) estão geometricamente
colocados na lateral da casa. Estão “esculpidos” sobre a janela do quarto da viajante
que uma vez criança, ali sonhou com uma Gardunha sempre romântica e cheia de
vida,
É na Mata Nacional do
perímetro de Castelo Novo que a memória conduz o narrador para o tempo em que
debaixo dos imponentes cedros havia bancos e uma mesa hexagonal de granito que alguém
fez desaparecer.
Na antiga sala de visitas
da Gardunha para Castelo Novo e com a Raia no horizonte, também havia arbustos e bancos
onde o guarda-florestal recebia outros viajantes e amantes da sua serra.
Ali, o
guardião da fauna e da flora da Gardunha fez tantos amigos como cerejas e
também essas deixaram de povoar aquela zona da Gardunha.
Aqui está uma explicação
poética para o vazio que agora se instala na última mesa localizada nas
imediações da Casa Florestal de Castelo Novo e onde o silêncio chega a embrenhar-se
na pele do viajante.
É então que a viajante,
narradora e saudosista da sua Gardunha fixa o olhar naquela mesa e lamenta que
o destino e os erros do homem tenham feito do seu jardim um cemitério de
silêncio localizado na encruzilhada das causas e consequência do fogo.
Numa tentativa de
enriquecer a narrativa que comprova o sentimento de quem passou a manhã no
silêncio da Gardunha, penso num poema suficientemente rico e que seja capaz de traduzir
a mágoa que fica do reencontro com as pessoas e lugares que me fizeram mulher.
Lembrei-me de Pessoa.
Na pesquisa encontrei Álvaro
de Campos
E diz o poema:
Penso em ti no silêncio da
noite, quando tudo é nada,
Penso em ti no silêncio da
noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no
silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim,
passageiro parado
De uma viagem em Deus,
inutilmente penso em ti.
Todo o passado, em que
foste um momento eterno
E como este silêncio de
tudo.
Todo o perdido, em que
foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que
foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser
neste silêncio noturno.
Tenho visto morrer, ou
ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais
nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se
foi um homem ou uma conversa;
Ou um [. . .] assustado e
mudo,
E o mundo hoje para mim é
um cemitério de noite
Branco e negro de campas e
[. . .] e de luar alheio
E é neste sossego absurdo
de mim e de tudo que penso em ti.
s. d. Álvaro de Campos — Livro de
Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização
e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993: 174.