quinta-feira, novembro 02, 2017

Cemitério de Silêncios


No dia em que toda a gente caminhava para o cemitério subi à Gardunha. A viagem iniciou-se exatamente à porta do cemitério da minha aldeia Natal. Sim, essa terra onde o silêncio geral denota o despovoamento agravado pelos incêndios que deixaram um rasto de destruição e um chão vincadamente negro.

No hora em que o povo descia desde a igreja até à zona baixa de Castelo Novo para ali prestar homenagem aos que jazem no cemitério localizado no sopé da Gardunha, contrariei a tradição, dispensei o momento de oração e silêncio coletivos para mergulhar numa outra geografia, igualmente marcada por um silêncio sepulcral.

Serra acima, numa manhã sombria de novembro e a ameaçar chuva, dei-me conta do vasto cenário carregado de negro.

À primeira paragem, já fora do carro e sem o som da música ambiente, os meus ouvidos fizerem um esforço maior para identificar o chilrear de um melro, um pássaro ou um milhafre ávido de galinhas das capoeiras localizadas nos campos da Gardunha.

Porém as quintas, que foram resistindo à desertificação do território, estão agora reduzidas a cinza e as galinhas ou outros vivos que por lá existiram finaram-se em agosto último.

Assim terá acontecido com as raposas e os coelhos que já se passeavam pela serra e certamente sucumbiram ao calor do inferno das chamas.

É então que a viajante se dá conta do silêncio continuado que a acompanha desde o cemitério de silêncios. Esse lugar onde habitam os nossos entes queridos e que naquele dia de agosto também terão sentido o inferno do fogo.  O bafejar da chama sobre as campas que compõem o "povoado" desse lugar de invariável confluência anual no Dia dos Santos.

O poder do silêncio do cemitério foi de tal forma poderoso que a demorada paragem no outrora paradisíaco lugar da Casa Florestal de Castelo Novo se traduziu em calafrios. A viajante sentiu uma pontinha de medo quanto à ausência de um único barulho. Nem um ruído! Uma folha a cair, a serpentear de um lugar para o outro... Até as pinhas estavam todas no chão!

Não se ouvia uma mosca. Nem havia sinais de vivalma. A água escasseia e não encharca os terrenos à volta do tanque que se apresentava quase vazio. 
Da bica corre um fio do precioso líquido e nem me atrevo a bebê-la pois os incêndios foram há pouco tempo e as chuvas ainda não apaziguaram o manto de cinzas.
São tantos os sinais a adensar o cemitério de silêncios que até as lágrimas do viajante secaram. A descrença tolhe-nos o olhar e na alma lembra-nos que quase nada nos prende áquele lugar.

O fogo de há dois meses e meio levou outra vez o verde da Gardunha e agora a viajante só consegue identificar os lugares onde tantas pessoas foram felizes!

Embora a Casa Florestal de Castelo Novo permaneça intacta, aquela geografia é, também ela, um cemitério de silêncios. Desapareceu tudo!

Os mosquitos, as moscas, as aves, as raposas e os coelhos.

As árvores que já estavam a reerguer-se, depois do fogo de há doze anos, também pereceram e delas restam apenas pequenos troncos dos quais haverá de rebentar uma nova planta. 

Uma renovada réstia de fé num amanhã outra vez verdejante e esplendorosamente belo.

Mas nessa altura a viajante e os amantes da Gardunha continuarão a questionar-se quanto ao abandono a que está votada a Casa Florestal. 




Consequentemente lamentarão o avanço da degradação do imóvel onde permanecem os azulejos com letras azuis escuras a dizer “Matas Nacionais”.

Elegantes e com letras bem definidas, os azulejos (felizmente a mão alheia não os roubou!) estão geometricamente colocados na lateral da casa. Estão “esculpidos” sobre a janela do quarto da viajante que uma vez criança, ali sonhou com uma Gardunha sempre romântica e cheia de vida,

É na Mata Nacional do perímetro de Castelo Novo que a memória conduz o narrador para o tempo em que debaixo dos imponentes cedros havia bancos e uma mesa hexagonal de granito que alguém fez desaparecer.

Na antiga sala de visitas da Gardunha para Castelo Novo e com a Raia no horizonte, também havia arbustos e bancos onde o guarda-florestal recebia outros viajantes e amantes da sua serra. 

Ali, o guardião da fauna e da flora da Gardunha fez tantos amigos como cerejas e também essas deixaram de povoar aquela zona da Gardunha.


Aqui está uma explicação poética para o vazio que agora se instala na última mesa localizada nas imediações da Casa Florestal de Castelo Novo e onde o silêncio chega a embrenhar-se na pele do viajante. 



É então que a viajante, narradora e saudosista da sua Gardunha fixa o olhar naquela mesa e lamenta que o destino e os erros do homem tenham feito do seu jardim um cemitério de silêncio localizado na encruzilhada das causas e consequência do fogo.

Numa tentativa de enriquecer a narrativa que comprova o sentimento de quem passou a manhã no silêncio da Gardunha, penso num poema suficientemente rico e que seja capaz de traduzir a mágoa que fica do reencontro com as pessoas e lugares que me fizeram mulher.

Lembrei-me de Pessoa.

Na pesquisa encontrei Álvaro de Campos

E diz o poema:


Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.
Todo o passado, em que foste um momento eterno
E como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser neste silêncio noturno.
Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa;
Ou um [. . .] assustado e mudo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e [. . .] e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.


s. d. Álvaro de Campos — Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993: 174.

quinta-feira, outubro 26, 2017

Um Encontro Inesperado

O que nós somos e como a vida nos transforma.

Obrigações de natureza profissional levaram-me hoje à Quinta Pedagógica do Fundão para acompanhar um workshop sobre estimulação sensorial.

Estavam lá dezenas de séniores.

De repente há uma mão que me acena, uns olhos que quase saltam do rosto e não escondem um misto de emoção e alegria.

Ao mesmo tempo há uma voz trémula que chama por mim. Aproximo-me ainda mais e reconheço o senhor Américo.

O meu tio Américo!

Quem o viu e quem o vê.

O homem do campo que criava gado e cuidava das hortas, o homem que a dureza da vida obrigou a ser rijo e rude é hoje um ser indefeso.

A idade e a doença apoderaram-se de um dos últimos guardadores de rebanhos da Gardunha.
A minha serra que também é a dele foi devastada pelo último crime contra a nossa floresta.
As chamas que tudo lamberam e devastaram as enconstas onde meu tio tantas vezes picou os dedos a apanhar castanhas.

As melhores castanhas cá da terra eram as do tio Américo.

Eram! Disse bem. Pois o efeito do fogo e a fragilidade humana do tio Américo colocarão em causa a produção de castanha.

Se é que a mesma já não estava suspensa!

O Tio Américo há muito tempo que havia deixado a vida no campo e até já tinha trocado a casa localizada junto à ribeira de Alpreade por outra mais confortável e de fácil acesso no centro da Aldeia Histórica de Castelo Novo.

Anos antes, muito anos antes, o tio Américo foi um dos resistentes das intempéries e da inclemência do fogo.
Quantas vezes as chamas varreram a "serra dos correias" e a "pelada" na enconta da Gardunha que faz fronteira com Alcongosta?

Tantas vezes a neve, o vento gélido e os incêndios o fizeram gritar "ai Jesus"!

Hoje em dia o suspiro e a crença prendem-se com outras dores e provações.

A falta de saúde e uma inesperada cirurgia atiram-no para a Unidade de Cuidados Continuados do Fundão.

Hoje encontrei-o numa daquelas jornadas em que os técnicos de saúde e as equipas de animação da Santa Casa da Misericórdia do Fundão acrescentaram vida aos anos do tio Américo e de todos os outros idosos que com ele estavam reunidos na Quinta Pedagógica do Fundão.




Entre os exercícios e as músicas de antigamente o meu tio Américo lá confessou que gosta de ali estar e que o tratam bem. De lágrima estendida na face direita do rosto mais magro e menos corado, o tio Américo confidenciou-me que a tia Adelina também está doente. "Teve um problema e tem estado no hospital mas o mal já está curado, amanhã vai para casa", explicou-me.

Dentro de dias prometo ir ao encontro do meu tio. Talvez lhe faça bem ver uma cara mais familiar ! Talvez, nessa ou noutras visitas "de médico", eu seja capaz de o fazer recuar no tempo e ele me conte sobre a labuta de antigamente.

A criação de gado. Os cabritos. As peles que vendia a 1.500 escudos. Os queijos. O essencial de uma vida nos campos que as chamas reduziram a cinza!

Oxalá essas vivências de homem da Gardunha continuem registadas na memória de quem enriquece o meu baú de recordações em família!







Eugénio de Andrade o poeta maior

 Fui à Póvoa. À terra do poeta nascido há uma centena de anos. Encontrei memória falada, orgulho e expetativa quanto à importância de Póvoa ...