segunda-feira, dezembro 04, 2017

A Inutilidade dos Dias Cinzentos

Na manhã do primeiro de dezembro após o desafio de uma velha amiga e cúmplice nas andanças dos livros fui ao encontro de uma tertúlia poética que todos os meses acontece num dos mais aprazíveis lugares do “meu” Fundão.

O sol que por esta altura anda baixo já havia aberto os braços por forma a receber-nos e a transmitir-nos um pouco de calor. Em dezembro faz frio em todo o lado mas há momentos e lugares em que tudo se transforma e as dinâmicas quase nos fazem crer na inutilidade dos dias cinzentos.

Claro que a manhã radiosa só poderia afastar todas e quaisquer nuvens que, mesmo longe do horizonte, pudessem apoderar-se do ser.

E o ambiente que se vivia naquele pedaço de manhã no Tertílias era tudo menos cinzento! Foi então que a manhã introspetiva das palavras e o universo poético da editora Alma Azul me tomaram o tempo e ajudaram naqueles momentos de meditação coletiva à volta da poesia de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa).



Na Tertúlia poética dinamizada pela minha querida Elsa Ligeiro o bloguer Ricardo Reis abriu a reflexão com a leitura de Aniversário.

E diz o poema:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. (…)


Começamos então a partilhar ideias sobre o que pretendeu o poeta transmitir-nos. Mal nos descuidamos já opinávamos sobre as frustrações do ser ou a capacidade que nós, os mais adultos e experientes, vamos ganhando quanto à consciência dos efeitos desta vida povoada de timings e outras exigências que nos privam de caminhar ao sabor do nosso contentamento e dos prazeres da vida.

E eis que alguém traz à lembrança a obra de António Ramos Rosa quando em “O Grito Claro” escreveu sobre o funcionário cansado.

A noite trocou-me os sonhos e as mãos 
dispersou-me os amigos 
tenho o coração confundido e a rua é estreita 

estreita em cada passo 
as casas engolem-nos 
sumimo-nos, 
estou num quarto só num quarto só 
com os sonhos trocados 
com toda a vida às avessas a arder num quarto só 

Sou um funcionário apagado 
um funcionário triste 
a minha alma não acompanha a minha mão 
Débito e Crédito Débito e Crédito 
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado 
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente 
e debitou-me na minha conta de empregado 
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar 
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? 

Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino 
irmão beijo namorada 
mãe estrela música 

São as palavras cruzadas do meu sonho 
palavras soterradas na prisão da minha vida 
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida 
num quarto só 

E ali permanecemos mais um bocado na conversa à volta dos livros e questionámo-nos sobre o sucesso de alguns escritores, às vezes produzidos pelo frenesim das redes sociais, e o desalento de outros que escrevendo belíssimas narrativas continuam a não conseguir sobreviver da literatura.

Também falámos da falta de tempo para os nossos sonhos e para estarmos com quem deveríamos ou gostaríamos de estar muitas e variadas vezes.

E agora que partilho com o leitor o que me ficou daquela manhã de poesia no Tertílias, no Fundão, lembro-me como gostaria de estar tantas e muitas mais vezes com os meus amigos de coração.

Os tais que cabem no poema de Alexandre O´Neill quando nos diz:
«Amigo» é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo, 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, 
Um coração pronto a pulsar 
Na nossa mão!  (…)

E hoje, que faz sete anos que passei a acompanhar de forma mais próxima alguém que faz da amizade uma grande festa, estou cheia de vontade de voltar às tertúlias da Alma Azul e sugerir que depois da obra de Eugénio de Andrade, que revisitaremos em janeiro próximo, possamos partilhar textos e pretextos alusivos aos amigos.


Aqueles que nos ajudam a afastarem os dias cinzentos.

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