Na manhã do primeiro de
dezembro após o desafio de uma velha amiga e cúmplice nas andanças dos livros
fui ao encontro de uma tertúlia poética que todos os meses acontece num dos
mais aprazíveis lugares do “meu” Fundão.
O sol que por esta altura
anda baixo já havia aberto os braços por forma a receber-nos e a transmitir-nos
um pouco de calor. Em dezembro faz frio em todo o lado mas há momentos e
lugares em que tudo se transforma e as dinâmicas quase nos fazem crer na
inutilidade dos dias cinzentos.
Claro que a manhã radiosa
só poderia afastar todas e quaisquer nuvens que, mesmo longe do horizonte,
pudessem apoderar-se do ser.
E o ambiente que se vivia
naquele pedaço de manhã no Tertílias era tudo menos cinzento! Foi então que a
manhã introspetiva das palavras e o universo poético da editora Alma Azul me
tomaram o tempo e ajudaram naqueles momentos de meditação coletiva à volta da
poesia de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa).
Na Tertúlia poética
dinamizada pela minha querida Elsa Ligeiro o bloguer Ricardo Reis abriu a
reflexão com a leitura de Aniversário.
E diz o poema:
No tempo em que festejavam o dia dos
meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. (…)
Começamos então a partilhar ideias sobre o que pretendeu o poeta transmitir-nos. Mal nos descuidamos já opinávamos sobre as frustrações do ser ou a capacidade que nós, os mais adultos e experientes, vamos ganhando quanto à consciência dos efeitos desta vida povoada de timings e outras exigências que nos privam de caminhar ao sabor do nosso contentamento e dos prazeres da vida.
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. (…)
Começamos então a partilhar ideias sobre o que pretendeu o poeta transmitir-nos. Mal nos descuidamos já opinávamos sobre as frustrações do ser ou a capacidade que nós, os mais adultos e experientes, vamos ganhando quanto à consciência dos efeitos desta vida povoada de timings e outras exigências que nos privam de caminhar ao sabor do nosso contentamento e dos prazeres da vida.
E eis que alguém traz à lembrança
a obra de António Ramos Rosa quando em “O Grito Claro” escreveu sobre o
funcionário cansado.
A noite trocou-me os sonhos
e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos,
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos,
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só
E ali permanecemos mais um
bocado na conversa à volta dos livros e questionámo-nos sobre o sucesso de
alguns escritores, às vezes produzidos pelo frenesim das redes sociais, e o
desalento de outros que escrevendo belíssimas narrativas continuam a não
conseguir sobreviver da literatura.
Também falámos da falta de
tempo para os nossos sonhos e para estarmos com quem deveríamos ou gostaríamos
de estar muitas e variadas vezes.
E agora que partilho com o
leitor o que me ficou daquela manhã de poesia no Tertílias, no Fundão,
lembro-me como gostaria de estar tantas e muitas mais vezes com os meus amigos
de coração.
Os tais que cabem no poema
de Alexandre O´Neill quando nos diz:
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão! (…)
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão! (…)
E hoje, que faz sete anos que passei a acompanhar de forma mais próxima alguém que faz da amizade uma grande festa, estou cheia de vontade de voltar às tertúlias da Alma Azul e sugerir que depois da obra de Eugénio de Andrade, que revisitaremos em janeiro próximo, possamos partilhar textos e pretextos alusivos aos amigos.
Aqueles que nos ajudam a
afastarem os dias cinzentos.