segunda-feira, dezembro 04, 2017

A Inutilidade dos Dias Cinzentos

Na manhã do primeiro de dezembro após o desafio de uma velha amiga e cúmplice nas andanças dos livros fui ao encontro de uma tertúlia poética que todos os meses acontece num dos mais aprazíveis lugares do “meu” Fundão.

O sol que por esta altura anda baixo já havia aberto os braços por forma a receber-nos e a transmitir-nos um pouco de calor. Em dezembro faz frio em todo o lado mas há momentos e lugares em que tudo se transforma e as dinâmicas quase nos fazem crer na inutilidade dos dias cinzentos.

Claro que a manhã radiosa só poderia afastar todas e quaisquer nuvens que, mesmo longe do horizonte, pudessem apoderar-se do ser.

E o ambiente que se vivia naquele pedaço de manhã no Tertílias era tudo menos cinzento! Foi então que a manhã introspetiva das palavras e o universo poético da editora Alma Azul me tomaram o tempo e ajudaram naqueles momentos de meditação coletiva à volta da poesia de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa).



Na Tertúlia poética dinamizada pela minha querida Elsa Ligeiro o bloguer Ricardo Reis abriu a reflexão com a leitura de Aniversário.

E diz o poema:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. (…)


Começamos então a partilhar ideias sobre o que pretendeu o poeta transmitir-nos. Mal nos descuidamos já opinávamos sobre as frustrações do ser ou a capacidade que nós, os mais adultos e experientes, vamos ganhando quanto à consciência dos efeitos desta vida povoada de timings e outras exigências que nos privam de caminhar ao sabor do nosso contentamento e dos prazeres da vida.

E eis que alguém traz à lembrança a obra de António Ramos Rosa quando em “O Grito Claro” escreveu sobre o funcionário cansado.

A noite trocou-me os sonhos e as mãos 
dispersou-me os amigos 
tenho o coração confundido e a rua é estreita 

estreita em cada passo 
as casas engolem-nos 
sumimo-nos, 
estou num quarto só num quarto só 
com os sonhos trocados 
com toda a vida às avessas a arder num quarto só 

Sou um funcionário apagado 
um funcionário triste 
a minha alma não acompanha a minha mão 
Débito e Crédito Débito e Crédito 
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado 
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente 
e debitou-me na minha conta de empregado 
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar 
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? 

Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino 
irmão beijo namorada 
mãe estrela música 

São as palavras cruzadas do meu sonho 
palavras soterradas na prisão da minha vida 
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida 
num quarto só 

E ali permanecemos mais um bocado na conversa à volta dos livros e questionámo-nos sobre o sucesso de alguns escritores, às vezes produzidos pelo frenesim das redes sociais, e o desalento de outros que escrevendo belíssimas narrativas continuam a não conseguir sobreviver da literatura.

Também falámos da falta de tempo para os nossos sonhos e para estarmos com quem deveríamos ou gostaríamos de estar muitas e variadas vezes.

E agora que partilho com o leitor o que me ficou daquela manhã de poesia no Tertílias, no Fundão, lembro-me como gostaria de estar tantas e muitas mais vezes com os meus amigos de coração.

Os tais que cabem no poema de Alexandre O´Neill quando nos diz:
«Amigo» é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo, 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, 
Um coração pronto a pulsar 
Na nossa mão!  (…)

E hoje, que faz sete anos que passei a acompanhar de forma mais próxima alguém que faz da amizade uma grande festa, estou cheia de vontade de voltar às tertúlias da Alma Azul e sugerir que depois da obra de Eugénio de Andrade, que revisitaremos em janeiro próximo, possamos partilhar textos e pretextos alusivos aos amigos.


Aqueles que nos ajudam a afastarem os dias cinzentos.

terça-feira, novembro 28, 2017

Os Amigos Revelam-se

Num dos textos do livro “O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas”, o teólogo José Tolentino Mendonça sugere ao leitor uma reflexão sobre os amigos de perto e de longe. Os que estão sempre presentes e os distantes. Na atitude e no verbo.

Sugere o escritor e poeta que sejamos capazes de valorizar a afeição em vez da posse.

E mesmo quando o desprendimento é uma realidade, Tolentino Mendonça sugere que sejamos capazes de crer na essência da história e na origem dos laços.

E diz o texto:

A etimologia da amizade reenvia-nos, assim, não para uma qualquer experiência casual, mas para a memória daquela afeição primeira que estrutura silenciosamente a existência. Por isso, na sua espantosa leveza, e sem alardes, a amizade dialoga com coisas muito fundas dentro de nós: faz-nos reviver o primeiro amor com que fomos (ou não fomos) amados; toca as nossas feridas, mesmo as que não conseguimos verbalizar; transmite-nos confiança para sermos o que somos e como somos; estimula-nos a progredir vida fora.
Nem todas as nossas amizades chegam a tomar consciência da extraordinária viagem interior que as mobiliza”. (…)



É bem verdade que muitas vezes a amizade não vai além da verbalização de uma palavra mas há sempre a esperança de que os verdadeiros amigos estejam sempre ao nosso lado.
Haja o que houver!

Porém há os dias em que a dúvida se instala e a alma veste-se de negro por sentir que uma e outra vezes, muitas vezes, a amizade deixa de traduzir-se em afeição e passa a ser um termo amplo e sem gesto. Sem o laço genuíno que vinha da primeira e silenciosa estrutura.

É então que nos olhamos ao espelho e nos perguntamos se o defeito é nosso. E se o nosso conceito de amizade e reciprocidade combina com a abordagem prosaica de uma convivência e cumplicidade sem estimulo e carregado de omissões e ingratidão.

Estes têm sido anos para desbravar caminhos, afastar pedras e vencer barreiras.

É também um período da minha vida em que tenho observado os meus amigos. Os de perto e de longe. Os presentes e os ausentes. Os desprendidos que são capazes de surpreender. Pela sua generosidade pela genuinidade de cada gesto!

Quem se lembra de nós, quem gosta de nós, promove. Age. Não omite. Dá continuidade ao registo.

Que me desculpe o José Tolentino Mendonça mas eu preciso de sentir que os meus amigos mesmo distantes estão próximos.

Estão sempre aqui. Chamam por mim. Perguntam como estou. Acompanham o meu percurso. Ouvem, leem e criticam. Dizem presente.

E fundamentalmente não são ingratos.

quinta-feira, novembro 02, 2017

Cemitério de Silêncios


No dia em que toda a gente caminhava para o cemitério subi à Gardunha. A viagem iniciou-se exatamente à porta do cemitério da minha aldeia Natal. Sim, essa terra onde o silêncio geral denota o despovoamento agravado pelos incêndios que deixaram um rasto de destruição e um chão vincadamente negro.

No hora em que o povo descia desde a igreja até à zona baixa de Castelo Novo para ali prestar homenagem aos que jazem no cemitério localizado no sopé da Gardunha, contrariei a tradição, dispensei o momento de oração e silêncio coletivos para mergulhar numa outra geografia, igualmente marcada por um silêncio sepulcral.

Serra acima, numa manhã sombria de novembro e a ameaçar chuva, dei-me conta do vasto cenário carregado de negro.

À primeira paragem, já fora do carro e sem o som da música ambiente, os meus ouvidos fizerem um esforço maior para identificar o chilrear de um melro, um pássaro ou um milhafre ávido de galinhas das capoeiras localizadas nos campos da Gardunha.

Porém as quintas, que foram resistindo à desertificação do território, estão agora reduzidas a cinza e as galinhas ou outros vivos que por lá existiram finaram-se em agosto último.

Assim terá acontecido com as raposas e os coelhos que já se passeavam pela serra e certamente sucumbiram ao calor do inferno das chamas.

É então que a viajante se dá conta do silêncio continuado que a acompanha desde o cemitério de silêncios. Esse lugar onde habitam os nossos entes queridos e que naquele dia de agosto também terão sentido o inferno do fogo.  O bafejar da chama sobre as campas que compõem o "povoado" desse lugar de invariável confluência anual no Dia dos Santos.

O poder do silêncio do cemitério foi de tal forma poderoso que a demorada paragem no outrora paradisíaco lugar da Casa Florestal de Castelo Novo se traduziu em calafrios. A viajante sentiu uma pontinha de medo quanto à ausência de um único barulho. Nem um ruído! Uma folha a cair, a serpentear de um lugar para o outro... Até as pinhas estavam todas no chão!

Não se ouvia uma mosca. Nem havia sinais de vivalma. A água escasseia e não encharca os terrenos à volta do tanque que se apresentava quase vazio. 
Da bica corre um fio do precioso líquido e nem me atrevo a bebê-la pois os incêndios foram há pouco tempo e as chuvas ainda não apaziguaram o manto de cinzas.
São tantos os sinais a adensar o cemitério de silêncios que até as lágrimas do viajante secaram. A descrença tolhe-nos o olhar e na alma lembra-nos que quase nada nos prende áquele lugar.

O fogo de há dois meses e meio levou outra vez o verde da Gardunha e agora a viajante só consegue identificar os lugares onde tantas pessoas foram felizes!

Embora a Casa Florestal de Castelo Novo permaneça intacta, aquela geografia é, também ela, um cemitério de silêncios. Desapareceu tudo!

Os mosquitos, as moscas, as aves, as raposas e os coelhos.

As árvores que já estavam a reerguer-se, depois do fogo de há doze anos, também pereceram e delas restam apenas pequenos troncos dos quais haverá de rebentar uma nova planta. 

Uma renovada réstia de fé num amanhã outra vez verdejante e esplendorosamente belo.

Mas nessa altura a viajante e os amantes da Gardunha continuarão a questionar-se quanto ao abandono a que está votada a Casa Florestal. 




Consequentemente lamentarão o avanço da degradação do imóvel onde permanecem os azulejos com letras azuis escuras a dizer “Matas Nacionais”.

Elegantes e com letras bem definidas, os azulejos (felizmente a mão alheia não os roubou!) estão geometricamente colocados na lateral da casa. Estão “esculpidos” sobre a janela do quarto da viajante que uma vez criança, ali sonhou com uma Gardunha sempre romântica e cheia de vida,

É na Mata Nacional do perímetro de Castelo Novo que a memória conduz o narrador para o tempo em que debaixo dos imponentes cedros havia bancos e uma mesa hexagonal de granito que alguém fez desaparecer.

Na antiga sala de visitas da Gardunha para Castelo Novo e com a Raia no horizonte, também havia arbustos e bancos onde o guarda-florestal recebia outros viajantes e amantes da sua serra. 

Ali, o guardião da fauna e da flora da Gardunha fez tantos amigos como cerejas e também essas deixaram de povoar aquela zona da Gardunha.


Aqui está uma explicação poética para o vazio que agora se instala na última mesa localizada nas imediações da Casa Florestal de Castelo Novo e onde o silêncio chega a embrenhar-se na pele do viajante. 



É então que a viajante, narradora e saudosista da sua Gardunha fixa o olhar naquela mesa e lamenta que o destino e os erros do homem tenham feito do seu jardim um cemitério de silêncio localizado na encruzilhada das causas e consequência do fogo.

Numa tentativa de enriquecer a narrativa que comprova o sentimento de quem passou a manhã no silêncio da Gardunha, penso num poema suficientemente rico e que seja capaz de traduzir a mágoa que fica do reencontro com as pessoas e lugares que me fizeram mulher.

Lembrei-me de Pessoa.

Na pesquisa encontrei Álvaro de Campos

E diz o poema:


Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.
Todo o passado, em que foste um momento eterno
E como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser neste silêncio noturno.
Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa;
Ou um [. . .] assustado e mudo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e [. . .] e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.


s. d. Álvaro de Campos — Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993: 174.

quinta-feira, outubro 26, 2017

Um Encontro Inesperado

O que nós somos e como a vida nos transforma.

Obrigações de natureza profissional levaram-me hoje à Quinta Pedagógica do Fundão para acompanhar um workshop sobre estimulação sensorial.

Estavam lá dezenas de séniores.

De repente há uma mão que me acena, uns olhos que quase saltam do rosto e não escondem um misto de emoção e alegria.

Ao mesmo tempo há uma voz trémula que chama por mim. Aproximo-me ainda mais e reconheço o senhor Américo.

O meu tio Américo!

Quem o viu e quem o vê.

O homem do campo que criava gado e cuidava das hortas, o homem que a dureza da vida obrigou a ser rijo e rude é hoje um ser indefeso.

A idade e a doença apoderaram-se de um dos últimos guardadores de rebanhos da Gardunha.
A minha serra que também é a dele foi devastada pelo último crime contra a nossa floresta.
As chamas que tudo lamberam e devastaram as enconstas onde meu tio tantas vezes picou os dedos a apanhar castanhas.

As melhores castanhas cá da terra eram as do tio Américo.

Eram! Disse bem. Pois o efeito do fogo e a fragilidade humana do tio Américo colocarão em causa a produção de castanha.

Se é que a mesma já não estava suspensa!

O Tio Américo há muito tempo que havia deixado a vida no campo e até já tinha trocado a casa localizada junto à ribeira de Alpreade por outra mais confortável e de fácil acesso no centro da Aldeia Histórica de Castelo Novo.

Anos antes, muito anos antes, o tio Américo foi um dos resistentes das intempéries e da inclemência do fogo.
Quantas vezes as chamas varreram a "serra dos correias" e a "pelada" na enconta da Gardunha que faz fronteira com Alcongosta?

Tantas vezes a neve, o vento gélido e os incêndios o fizeram gritar "ai Jesus"!

Hoje em dia o suspiro e a crença prendem-se com outras dores e provações.

A falta de saúde e uma inesperada cirurgia atiram-no para a Unidade de Cuidados Continuados do Fundão.

Hoje encontrei-o numa daquelas jornadas em que os técnicos de saúde e as equipas de animação da Santa Casa da Misericórdia do Fundão acrescentaram vida aos anos do tio Américo e de todos os outros idosos que com ele estavam reunidos na Quinta Pedagógica do Fundão.




Entre os exercícios e as músicas de antigamente o meu tio Américo lá confessou que gosta de ali estar e que o tratam bem. De lágrima estendida na face direita do rosto mais magro e menos corado, o tio Américo confidenciou-me que a tia Adelina também está doente. "Teve um problema e tem estado no hospital mas o mal já está curado, amanhã vai para casa", explicou-me.

Dentro de dias prometo ir ao encontro do meu tio. Talvez lhe faça bem ver uma cara mais familiar ! Talvez, nessa ou noutras visitas "de médico", eu seja capaz de o fazer recuar no tempo e ele me conte sobre a labuta de antigamente.

A criação de gado. Os cabritos. As peles que vendia a 1.500 escudos. Os queijos. O essencial de uma vida nos campos que as chamas reduziram a cinza!

Oxalá essas vivências de homem da Gardunha continuem registadas na memória de quem enriquece o meu baú de recordações em família!







terça-feira, outubro 24, 2017

Bem-Haja

Há uma música do Caetano Veloso que diz assim:
(…) Quando a gente gosta 
É claro que a gente cuida  (…)

A letra de “sozinho” pode parecer que aparece aqui desgarrada daquilo que me proponho partilhar com os leitores. Mas não!
A mesma encaixa no desabafo digital que observei há dois dias quando um jovem empreendedor manifestava admiração e gratidão por aqueles que são capazes de elogiar e dar força para o caminho.

Efetivamente, não conheço ninguém que não goste de uma palavra de felicitações, um aplauso pelo êxito de uma iniciativa ou pela perspetiva de afirmação de um projeto.

Mas, na verdade, também não conheço muita gente capaz de nos transmitir uma palavra de apreço ou regozijo pelo nosso êxito.
E aqui entra o elogio. Elogiar não tem de ser subserviência ou bajulice.  

Mas convenhamos que um elogio faz bem! Enche-nos de orgulho, estimula-nos a entrega, o sentido guerreiro, o apego às nossas causas.
Porém, quem é capaz de nos dar um elogio sem segundas intenções? Quem é capaz de reconhecer com honestidade os nossos passos ou o percurso adotado?

Lembrem-se lá!
Digam-me que estou a ser bastante injusta. Digam qual foi a última vez que o vosso chefe elogiou o vosso trabalho?

E aqui lembro-me imediatamente de António Paulouro. O fundador do Jornal do Fundão e da Rádio que me preencheu a vida durante 22 anos, nunca me fez um telefonema para enaltecer um noticiário. Nunca! De cada vez que o telefone da redação da Rádio JF tocava era sempre para criticar, exigir, sugerir.

Às vezes sentíamo-nos deprimidas com a frieza das palavras, com a ausência de um gesto de satisfação pelo empenho e dedicação dos que escreviam, produziam e apresentavam as notícias.

Mas António Paulouro ouvia os noticiários. E puxava por nós! Também nos surpreendia com questões de natureza literária e ai de quem não estivesse a ler um livro!

Agora que observo a gratidão do jovem empreendedor pelo reconhecimento e odes ao seu percurso empresarial, recordo-me de António Paulouro e só posso estar-lhe grata pela atenção que dava ao meu trabalho. Ao nosso trabalho coletivo.
Bem-haja António Paulouro!

Se outros lhe seguissem o exemplo, certamente muitos menos se sentiriam órfãos no seu trilho laborioso.


terça-feira, outubro 03, 2017

Uma Doçura de Teimosia

Qualquer dia faz dezasseis anos. Está uma mulher!
Há maneira que os anos avançam o perfil de menina torna-se mais refinado e damos-nos conta do quão parecidas somos.

Lá em casa as semelhanças dão um jeitão à classe masculina do clã. Vezes sem conta ouve-se uma voz mais poderosa e rabujenta que nos lembra a autenticidade dos nossos traços e modos de agir. 
- És mesmo como a tua mãe! 
A tirada do mais adulto homem da casa quase sempre tem resposta. E a mesma traduz-se numa estridente e cumplice gargalhada.

Mas como em tudo na vida, a rotina nem sempre veste azul ou transborda as cores do arco-íris. 
A Nina, como lhe chamo desde bebé, é uma doçura de teimosia. O modo de ser e as reações intempestivas que herdou da progenitora, quase sempre seladas com um ruidoso bater de porta, desaparecem instantes depois.
Na terminologia moderna chamar-lhe-ia bipolar. Mas eu, que sou tão igual a ela, perfiro caracterizá-la como mau feitio.

E o que é ter mau feitio, ser intempestiva ou bipolar?
Não quereremos dizer que somos determinadas? Exigentes...

A menina quase mulher é, efectivamente, uma rapariga determinada. Na escola, no desporto e nas relações interpessoais.

Os últimos tempos não têm sido fáceis pois o clã passou de cinco para quatro elementos. 
A "Judite Sousa" lá de casa está menos perto de nós. Menos presente. Ainda que seja um afastamento físico nenhum de nós esconde que temos saudades dos monólogos da "Judite Sousa" e da forma organizada e metódica que desde sempre caracterizam o seu percurso.

É diante esta realidade que o par de intempestivas reganha uma cumplicidade adormecida. 

A distância forçada de um deixou mais espaço e tempo para a mau feitio mor  renovar os laços umbilicais com a nadadora e pianista que sonha ter muitos filhos e casar com um homem rico.

Sim, o leitor percebeu bem! A Nina quer ser uma mãe de mão cheia. Contudo, não será a fada do lar.

Nós, pessoas determinadas e audazes, temos um enorme apego à família e alimentamos o cordão umbilical mas também queremos voar!

Voemos! Sejamos sempre uma doçura de teimosia. Nem que seja para que o Tiquita tenha a certeza que também o amamos muito. Tiquita será sempre o benjamim da família. E os traços de doçura teimosa já começam a dar sinais.

E agora que a prosa intimista chega aos fim, apetece-me dizer-vos: A Nina, que é sangue do meu sangue e papel químico dos Gabriel, tem sido o nosso amparo.

Ela é forte e determinada. Confia no amor incondicional e sabe promovê-lo.

Que a harmonia e musicalidade continuem a ser a banda sonora de nossas vidas.


quarta-feira, agosto 23, 2017

Hip-Hop no TeatroAgosto

“Antecipar o futuro” é o título de um álbum de canções de Hip-Hop interpretadas por Cevas. Cativou a minha atenção numa das noites da edição XIII do Festival Internacional de Teatro ao Ar Livre que decorre no Fundão até dia 27 de agosto.

Ir ao TeatroAgosto no mês em que a oferta cultural parece mais vocacionada para festas e romarias é uma bênção para quem continua a acreditar que no Interior de Portugal há movida e há quem faça acontecer.



O Festival de Teatro do Fundão é organizado pela ESTE- Estação Teatral. Uma companhia profissional de teatro radicada no Fundão que, a muito custo e movida a balões de oxigénio, consegue promover iniciativas culturais diferenciadoras que também acrescentam notoriedade ao Fundão.

Desde sempre a surpreender direcionando os espetadores e seguidores para o teatro que mergulha na identidade de um território mas também trabalha obras de grandes dramaturgos, a ESTE presenteia-nos a cada Verão com um cartaz cultural que orgulha uma comunidade inteira.

Desta vez o TeatroAgosto volta a brindar-nos com música e já esta noite (23 de agosto) há um Café Concerto - que é solidário pois as entradas revertem a favor da campanha de reflorestação da serra da Gardunha- em que atua “Anita do Brasil”. Ouviremos, então bossa nova, samba e a guitarra carioca interpretada por Miguelão. Antes disso teremos oportunidade de assistir à mais recente produção da ESTE. "Há Beira na revolta" é um espectáculo que reúne quatro histórias de força  e resiliência beirã: A tomada do Carvalhal, A história do Zé de Manteigas, A Rua dos Alves e As Cebolas de Napoleão.Cá está um exemplo de como a recolha e trabalho de laboratório da Estação Teatral nos ajuda a compreender o território!

Não faltam, pois, motivos para estar em mais um serão na Moagem-cidade do engenho e das artes.

Ali, voltando ao princípio deste texto, descobri a paixão e arte do jovem natural do Alcaide “Cevas” que através das letras das suas canções acrescentou criatividade e uma energia vibrante ao Festival de Teatro do Fundão. Antecipando o futuro, Cevas encantou-nos com a nostalgia de um amanhã relacionado com a memória coletiva de um território marcadamente rural e cuja geografia é inspiração para as letras do jovem rapper nascido na década de oitenta.

O Jovem Simple Sample Digger como se identifica nas redes sociais tem a freguesia do Alcaide no coração. Das suas letras brotam palavras de saudosismo quanto à movida na aldeia e convívios citadinos em lugares emblemáticos do seu Fundão. A cidade onde estudou, cresceu e se fez homem e à qual regressou para uma noite de ritmos que entusiasmaram a plateia constituída por fiéis seguidores do percurso do músico que já editou dezenas de álbuns e trabalhou com inúmeros dj´s de Portugal e do estrangeiro.

No TeatroAgosto fez-se acompanhar do Dj Fatinch e na voz fez duos com Uno. Cevas está ligado ao movimento Hip Hop no Fundão e o seu trabalho parece estar a dar frutos. Basta ouvir atentamente um dos mais conhecidos temas do rapaz que foge aos padrões comerciais e coloca em cada letra o seu mais apurado sentido critico denotando a irreverência própria dos criativos. 


e a letra



Observei mais do que falei, fui observador, 
Olhei no ínfimo dos outros, tornei me comunicador, 
Saltei a cerca dos limites sem ser anarquista, '
A vista vês me com ideais universalista. 

Dei mais ouvidos a quem precisou de uma pista certa, 
Aperta a mão que eu te ajudo a ficar alerta, 
Acerta o ritmo de uma vida que dói e infecta, 
E se intersecta em humildade que aceita a recta. 

A identidade que encontrei também te inspira, 
Na mira sou o que sei bem sem ser um akira, 
Prefira eu viver em paz com o que te transpira, 
Na ira estás sem soluções que mingua ou mirra. 

E tudo é grande ou pequeno consoante a estala, 
Dentro da escala a dimensão só ilude a fala, 
Ninguém agrada a toda a gente pela falta de tempo, 
Além do ser mais resiliente existe o consentimento. 

Mantenho o circulo em aberto para a tua entrada, 
Permito noções de unidade de forma ilimitada, 
Onde o limite se estabelece se o que percebeste foi nada, 
O entendimento está para quem sente a mesma bojarda. 

E os que se juntam ao movimento buscam pertencer, 
A uma atitude implacável sem razão de ser, 
Só por valer, prevalecer...
Nem sei se tas a entender....

Eugénio de Andrade o poeta maior

 Fui à Póvoa. À terra do poeta nascido há uma centena de anos. Encontrei memória falada, orgulho e expetativa quanto à importância de Póvoa ...