sexta-feira, julho 12, 2019

Pessoas que vão e pessoas que ficam


Quantos de nós olhamos para o caminho e nos damos conta da quantidade de pessoas que deixámos para trás? Deixámos ou foram essas pessoas que se afastaram de nós, dos nossos projetos e vivências?

As perguntas, bailam-nos no pensamento sempre que passamos por uma provação, quando iniciámos um projeto ou concluímos outro. Vivemos o momento com a energia e intensidade que o mesmo traduz mas observamos que algumas vezes somos seres solitários nessa viagem e relação de compromisso com as nossas coisas.

É então que a nossa memória, mesmo seletiva, nos conduz às pessoas que fizeram o mesmo percurso ou nos alimentaram o trilho do paralelo da vida.

Recordamos os dias mais perturbadores e os indubitavelmente felizes. Recuperamos a memória inabalável da presença das nossas pessoas, naquele dia, àquela hora. No momento mais improvável mas importante da nossa vida.

São essas minhas pessoas que pretendo “homenagear” com esta ode à valorização d@s amig@s de sempre e para sempre.

Também há as pessoas que outrora foram antecâmara das nossas preocupações e venturas. As tais pessoas que ficaram pelo caminho ou que deixaram de nos dizer presente.

E que dizer das pessoas que um dia nos foram próximas, morando nas nossas gavetas e agora nos observam de forma cordial?

Também há aquelas que fazem vista grossa. Aqui abro um parêntese para dizer que perdoei mas não esqueci aqueles seres humanos que passaram metade da vida a tecer-me loas e quando deixei de lhes dar palco mudavam de passeio para não me cumprimentar.

Ensinamentos num percurso em que dou especial importância às minhas pessoas. Aquelas que nunca me falham. Na alegria e na dor. Nos momentos solenes ou nas mais ridículas situações capazes de me deixar desconfortável.



E quem são as minhas pessoas? E as que ficaram pelo caminho?
Pensem nisto. Eu sei quem são, todas essas pessoas. Todos nós sabemos.

Agora façam esse exercício e obriguem-se a dedicar mais tempo de vós às pessoas que nunca vos falharam. Essas pessoas são incondicionalmente o nosso espelho.

Dêem-se. Digam presente. Surpreendam-nas.

Não fiquem à espera do último adeus para lhes dizerem que as amam. Que têm saudades dos tempos em que a vida foi mais generosa e potenciou mais encontros e partilha.
Digam-lhe hoje.  

quarta-feira, julho 03, 2019

Agora já ninguém faz adeus para a «Casa Portugal»


Quando em setembro de 2018 fui ao encontro de José Lopes Nunes para gravarmos uma conversa para o meu «Porque Hoje é Domingo» na Rádio Cova da Beira, estava longe de imaginar que a «Casa Portugal», onde fui ter com o Jolon, estaria na eminência de fechar portas.

Leio agora na imprensa falada e digital que o Jolon encerrou a loja localizada na Rua 25 de Abril, uma das mais movimentadas da Vila de Penamacor. Ouvi-o na Rádio a confessando-se “constrangido” por encerrar a loja onde esteve mais de 45 anos, como verdadeiro prestador de serviços às populações.

A «Casa Portugal» com mais de 100 anos já foi loja de seguros e outros serviços. Foi, fundamentalmente, paragem regular para “Adelino Galhardo, Rodrigues da Silva ou o poeta Domingos Campos”. “Amigos que às dez e meia vinham aqui para o café”, recorda, já com saudade, o homem que nos habituamos a ler nas estórias publicadas no Jornal do Fundão e nos livros entretanto editados.

“Não me sinto um pássaro fora da gaiola, por ter mais liberdade para a fotografia, pesca e escrita. Saio daqui com um misto de satisfação pelo serviço público que desenvolvi ao longo da vida e alguma preocupação por sentir que farei falta a muitas pessoas que aqui vinham”, contou ao Luís Seguro numa conversa que ouvi na telefonia.

Efetivamente, a «Casa Portugal», era muito mais que uma retrosaria povoada de coloridos mostruários de linhas e outras utilidades associadas à renda, bordados e arte de transformar tecidos. Quando lá cheguei, naquela manhã de setembro, já tinha “clientes”.  Clientes entre aspas, pois na verdade quem procurava a «Casa Portugal» fazia-o mais para partilhar situações, estórias e vivências que muitas vezes enriqueceram a prosa do fotógrafo e repórter José Lopes Nunes.  

“Muitas vezes as pessoas passavam ali e faziam-me adeus”, partiam do princípio que eu estava cá dentro”. Isso mesmo referiu no «Porque Hoje é Domingo» de dia 9 de setembro de 2018 José Lopes Nunes. Agora que o “mais antigo comércio tradicional de Penamacor” encerra, certamente que os transeuntes deixarão de acenar ao Jolon.



O rés do chão da loja de Jolon também era espaço para debater o território, partilhar episódios políticos, perceber sensibilidades. Tantas vezes dirigentes, pessoas singulares e gente anónima, chegados a Penamacor, procuravam a casa das linhas do Jolon.

Naquele dia, após a gravação do programa (pode recordá-lo aqui https://www.mixcloud.com/dulcegabriel58/porque-hoje-%C3%A9-domingo-224-09-setembro-2018-jos%C3%A9-lopes-nunes-jolon/) regressámos à «Casa Portugal» e lá estava um político da terra. Francisco Abreu, militante do PS, ex- autarca e ex- delegado distrital do Instituto Português da Juventude. Foi um reencontro feliz com alguém a quem as conversas à volta da Beira e seus territórios entre a fronteira, as serranias e o regadio dizem bastante.

Ali ficamos alguns instantes a falar de pessoas mais ou menos mediáticas. Recordamos José Luís Gonçalves, António José Seguro; Jorge Seguro Sanches, – figuras políticas marcantes com quem tantas vezes me cruzei no exercício responsável de informar- e os dias em que Francisco abreu foi cronista na Rádio Jornal do Fundão. Ficámos de falar num registo menos informal no «Porque Hoje é Domingo».

O tempo corre veloz e num ano não levei o Francisco Abreu à Rádio Cova da Beira! Lembro-o agora neste registo saudosista da importância da «Casa Portugal» na movida de Penamacor.

Estou certa que o Jolon saberá reencontrar-se com os amigos de sempre num outro local cheio de luz, com vista para a Malcata, foco na sua amada Aranhas ou com Espanha no horizonte.

Vida longa ao José Lopes Nunes que é um conhecedor profundo de Penamacor, das suas gentes na vila e nas aldeias.

sexta-feira, maio 24, 2019

Lembranças vossas


Ana Almeida, Rodolfo Pinto Silva, Liliana Machadinho, Sérgio Figueiredo, Carla Loureiro e Marisa Miranda. Que têm em comum estes nomes? O jornal Notícias da Covilhã. Foi no mais antigo semanário do distrito de Castelo Branco que esta semana recordei algumas passagens do meu percurso de atividade no jornalismo, lado a lado com estas pessoas.

Que é feito destes profissionais que outrora escreveram sobre lugares e projetos deste território que também é a minha geografia de causas e de afetos?

Pelo que observo o jornalismo perdeu uma parte destas pessoas. Chegaram à região por via da Universidade da Beira Interior. Cursaram ciências da comunicação, realizaram estágio e exerceram a profissão de jornalistas mas quase lhes perdi o rasto. Os órgãos de comunicação social não conseguiram mantê-los.

Ontem como hoje os recursos financeiros escasseiam, as redações estão à míngua de profissionais credenciados. Por maior que seja o gosto pela profissão, tantas vezes mal paga e desvalorizada, a gente faz-se à vida em outros projetos, muitas vezes longe da região onde nos apaixonamos pelo exercício do jornalismo livre.

Felizmente há as redes sociais que tanto diabolizamos mas que também têm virtudes. Aproximam-nos. Promovem reencontros virtuais com as nossas pessoas. Com gente boa e talentosa com a qual tivemos o privilégio de nos cruzar.

E que fizémos para as manter por cá?

Reflexões que marcaram a conversa mantida esta semana com o senhor Aurélio Carrega, uma espécie de guardador da memória do semanário de inspiração cristã que por estes dias assinala cem anos de existência.

É verdade, fui às instalações do Notícias da Covilhã na zona antiga da cidade universitária e na rota da arte urbana. Estive no Notícias no dia em que o jornal, fundado em 1913 com o nome “ A Democracia” e rebatizado em 1919, regressa á casa mãe. Na rua de Santa Maria à qual em 1999 o município da Covilhã atribuiu o nome de rua Jornal Notícias da Covilhã.

Ouvi o testemunho cronológico da história do Notícias e bebi do entusiasmo, agora mais distanciado por via da sua condição de reformado, do homem que durante 57 anos cuidou das contas do jornal, lidando com adversidades, críticas e emergências.

Os vários processos de modernização tecnológica, o fim do processo tipográfico, o sonho das novas instalações no Parque Industrial da Covilhã, o encerramento da gráfica do Notícias.

Memórias com gente dentro na narrativa verbalizada pelo senhor Aurélio Carrega que é o meu convidado no programa “Porque Hoje é Domingo” de dia 26 de maio de 2019 na Rádio Cova da Beira.

Aurélio Carrega e Luís Pardal Freire nas renovadas instalações do Notícias da Covilhã


A conversa previamente gravada levará os ouvintes à lembrança e percurso do Notícias da Covilhã. O jornal que nos 75 anos foi condecorado pela Presidência do Conselho de Ministros e pela Câmara da Covilhã, entidade que em 2012 entregou ao então diretor, o arcipreste Fernando Brito dos Santos, a Medalha de ouro de Mérito Municipal.

Marcos históricos no percurso da publicação que teve como diretores, José Andrade, António Mendes Fernandes, José Geraldes, Fernando Brito e Luís Pardal freire.

O atual diretor também participa nas conversas e garante que o Notícias da Covilhã continuará a fazer “jornalismo de proximidade e de causas mas nunca de subserviência”.

Por aqui, continuaremos a olhar para o Notícias da Covilhã, um dos 33 jornais com mais de 100 anos, como uma referência no panorama da imprensa regional.

Uma voz na diáspora.

Uma publicação em que não raras vezes sabe bem viajar pela narrativa factual ou pela reportagem enriquecedora da Ana Ribeiro Rodrigues. Uma beirã da terra da cereja pela qual mantenho respeito e admiração profissional.

domingo, maio 05, 2019

Ode aos Afetos

Hoje é o dia da mãe.
A data, que o apelo ao consumo tornou mais comercial, deveria ser uma jornada de reflexão sobre a necessidade de valorizamos a mãe.

Não vou aqui publicar fotos da minha mãe nem mostrar um postal de ouro com os meus filhos. Eles até agradecem que não os exponha. Não assumem o desconforto de ver o orgulho da família plasmado nas redes sociais e nos fóruns. Mas sempre que nós damos a conhecer ao mundo a nossa felicidade pela realização deles e delas, lá vem o comentário ,"oh mãe publicaste aquilo?!"

Pois.....

Mas hoje apetece escrever. Escrever a todas as pessoas que se esquecem de, a cada dia, sempre que o apelo lhes chega, dizer às mães o quanto as amam, respeitam e quão poderosa é a sua proteção.
Recupero um texto do José Luís Peixoto que, a meu ver, nos incita a dizermos aquilo que tantas vezes silenciamos e só verbalizamos nos momentos de perda irreparável ou quando mergulhamos na saudade dos dias plenos.


Leiam.

«mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes».

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

terça-feira, abril 30, 2019

Onde é que te gastas?


Onde é que te gastas é uma pergunta bastante comum entre amig@s e significa que queremos saber onde tens andado. O que tens feito. E que terão feito os meus leitores do «De Castelo Novo para o Mundo»?

Por certo, algumas pessoas terão dado pela minha ausência!

Tenho trabalhado bastante. A missão de facilitar a comunicação absorve-me sobremaneira. Depois há o compromisso semanal de realizar o meu «Porque Hoje é Domingo» https://www.mixcloud.com/dulcegabriel58/  na Rádio Cova da Beira.

Ultimamente dedico-me pouco à reportagem escrita e aos dizeres daqui…
Às palavras que saem ao sabor da pena….

No outro dia uma companheira de jornada disse-me que passou a escrever no seu blogue uma vez por semana (www.nuncamaisesabado.net) e também me explicou que se obriga a fazê-lo pelo menos uma vez por semana.

Está explicada a razão do «Nunca mais é Sábado»! Vão lá ler.

Também fiquei entusiasmada. De tal forma que abri esta janela para o mundo e observei que não publico aqui nada desde dezembro de 2018.

Raios!

De então para cá fiz tantos passeios, acompanhei concertos e outros eventos. Celebrei a vida e a amizade. Também fui surpreendida pela visita de uma amiga de sempre e fomos à neve.

Até parece que estou longe desse cartaz maior que é a serra da Estrela!

“Dá Deus as nozes a quem não tem dentes”, já diziam os antigos e têm muita razão. Afinal a Estrela vê-se de todas as janelas da minha geografia e rotinas diárias!
Como diria o diretor do Jornal do Fundão, “são os custos da interioridade”!

E destes a gente gosta.

E que tenho feito, além de comunicar?

Perdi um amigo de sempre e não contive as lágrimas pela partida do João Martins. Um amigo de família que pelo menos uma vez foi protagonista dos meus apontamentos. https://apaixonadapelavida.blogspot.com/2016/11/gestos-e-afetos.html

Em dezembro último estivémos juntos. 




O João partiu semanas depois.

Neste tempo passou um século sobre o nascimento do meu pai. Foi a dia 10 de abril. 100 anos de nascimento de João Gabriel. Saudades tuas, meu pai de ouro. Ainda não consegui escrever o livro sobre o último guarda-florestal de Castelo Novo. A seu tempo, paizinho. A seu tempo!

Neste entretanto completei mais um aniversário, reuni amig@s e familiares.
Retomei o hábito antigo de ir, com regularidade, aos concertos que se fazem nas nossas salas de espetáculos. Também tenho passeado.

Dos concertos guardo a memórias das melhores companhias e a revisitação de grandes canções. No outro dia fascinei-me com «The Gift», revivi a vida com «Resistência» e descobri «Rubel».

https://youtu.be/A8ukTfUJUj8

Das canções às traições vai alguma distância mas a música também significa valorizar o património imaterial dos territórios. E na última Quaresma o meu Fundão promoveu espetáculos de encher a alma.

Num dia de abril fui à Capela de São Francisco, no Fundão, e assisti ao  concerto Martyrio, protagonizado pelo coro comunitário Ensemble Renovatio. Martyrio é o resultado do projeto de criação LACE – Laboratórios de Criação Etnográfica para a Quadragésima, que este ano teve por tema “coro como unidade de criação”. A tradição oral dos cânticos quaresmais da Beira foi, então, interpretada por um coro comunitário – Ensemble Renovatio – com direção artística de Susana Quaresma e Mariana Zenha.




Foi lindo! 
Às tantas senti-me em Castelo Novo a ouvir as pessoas da minha Aldeia a interpretarem os martírios de lá.

Maravilhosa foi a jornada em que a ida à Moagem para assistir a um documentário sobre profissões em vias de extinção me dei conta de como valorizamos tão pouco as nossas pessoas e as marcas que esses protagonistas deixam nos lugares outrora mais povoados.

Foi lá que conheci Rodolfo Nuno Anes Silveira. Licenciado em Cinema e Comunicação Multimédia pela Universidade Lusófona, Rodolfo tem raízes nos Três Povos (Fundão), vive em Munique (Alemanha) e está fazer doutorando em Media Artes, na UBI- Universidade da Beira Interior.
Coordenador de estudos da Universidade de Televisão e Filmes de Munique (Hochschule für Fernsehen und Film - HFF), Rodolfo Silveira estava acompanhado de Daniel Lang da mesma universidade. 



Um e outro promoveram na região uma recolha sobre ofícios em desuso e através da técnica “falar com imagens” reuniram um conjunto de curtas-metragens que nos ajudaram a redescobrir um ferreiro, um cesteiro, uma tecedeira, um padeiro e um construtor de pífaros.

Artes e ofícios em vias de extinção num documentário notável que será apresentado no Festival de Cinema Documental de Munique (DOKFEST) no próximo mês de maio.

Fiquei orgulhosa daqueles jovens que assim nos levaram até ao Jarmelo, Alcongosta, Janeiro de Cima, Silvares e Três Povos.
É bom quando os trilhos da vida nos cruzam com pessoas assim.

Até outro instante!

sexta-feira, dezembro 21, 2018

No Reinado de Vales de Pêro Viseu


Uma promessa para prevenir uma praga ligada ao olival é o mote para uma tradição centenária que “não deve ser massificada” mas que traduz a forma como gerações de naturais de Vales de Pêro Viseu se dedicam à memória que “importa perpetuar”.


António Henriques Duarte tem 98 anos, é provavelmente o mais antigo habitante de Pêro Viseu e lembra-se desde sempre do Reinado. Uma tradição de Natal que se repete a cada dia 25 de dezembro na anexa da freguesia. Depois da hora de almoço, no dia de Natal, o largo em frente à capela de São Bartolomeu em Vales de Pêro Viseu ganha vida pois as pessoas daquela aldeia concentram-se à volta do que resta da fogueira da noite de consoada e ali degustam as filhoses oferecidas pelos mordomos que no ano anterior foram escolhidos para manter a tradição do Reinado.

“Uma tradição genuína que valoriza a nossa terra no período do Natal” descreve o autarca local. Para Pedro Mesquita “o mais importante é honrarmos a memória de todos os que já contribuíram para a realização desta tradição e incutir nos mais novos a autenticidade da mesma”. O Reinado assume-se, por isso, como um momento de confraternização entre pessoas de todas as idades que gostam da partilha e preservação das tradições locais. E os locais têm uma vaga memória da origem da festa. Há até quem afirme que num ano em que não promoveram o Reinado, “a aldeia ficou cheia de uma praga de bichos que queimou as folhas das oliveiras”. “As folhas estavam todas cruzadas”, contou ao Jornal do Fundão Ana Milheiro, natural de Vales de Pêro Viseu.
João Marçalo é desde há quatro anos sacerdote naquela paróquia e além de corroborar a estória da septuagenária Ana Milheiro enquadrou a tradição: “Nasceu associada a uma outra tradição das festas de São Sebastião e tem a ver com questões de pestes, estando muito ligada à crença das pessoas que neste caso não é o São Sebastião – como acontece em Janeiro de Cima ou na Póvoa de Atalaia, só para citar algumas - mas sim ao Santo Estevão”. “Houve uma peste que afetou as oliveiras que começaram a deixar de dar azeitona e junto à capela criou-se uma praga. E foi então que, de forma coletiva fizeram a promessa de todos os anos no dia de Natal realizarem um momento de oração”. Seguem-se a prova das filhoses e a “eleição” dos novos mordomos, uma procissão à volta da capela e beija-se o Menino Jesus. Esta não é a única tradição de Natal na Pêro Viseu. Além do madeiro, no dia 24, desde 2013 que na freguesia se realiza um mercado de Natal. É sempre no segundo fim-de-semana de dezembro.


* Texto originalmente publicado na edição de 20 de dezembro do Jornal do Fundão

quinta-feira, dezembro 13, 2018

Do Agasalho à Tecnologia


Apaixonou designers e criativos. É muito mais que um agasalho. Habitualmente utilizado na decoração de interiores e mobiliário, o produto serrano é também matéria-prima para sapatos e ferramentas tecnológicas. A Microsoft, esse gigante da informática, rendeu-se às características do tecido tradicional que agora “agasalha” os tablets. 



À descoberta do burel. Poderia ser este o título do texto no qual nos propomos partilhar com os leitores o percurso de inovação que caracteriza o tecido artesanal português totalmente feito de lã. “Depois de carmeada e cardada, a lã transforma-se em mecha. A mecha é torcida na fiação e transforma-se em fio. O mesmo se passa pela urdideira originando a teia. O tear transforma a teia em xerga. A xerga passa pelo batano e por outros tratos e transforma-se finalmente em burel”. Explicações plasmadas numa folha de sala dedicada a trabalhos em burel.

Já as características técnicas e diferenciadoras do tecido “resistente e versátil” conferem ao burel mais que a garantia de aconchego. As experiências à volta da sua textura, padrões e cores transformam-no numa panóplia de oportunidades e peças diferenciadoras que enriquecem o portefólio criativo de quem desejava afirmar-se na decoração de interiores e na valorização de algo que para muitos não passava de um tecido grosseiro e rústico apenas utilizado pelos pastores.

Cabeceiras de cama, painéis de parede, quadros, corredores de mesa, capas de almofadas e uma multiplicidade de peças utilitárias são hoje uma realidade na utilização do burel. E até já há sapatos e ténis em burel! No ano passado uns ténis feitos com burel e produzidos pela Burel Factory, uma empresa de Manteigas, receberam um prémio de inovação, numa das maiores feiras mundiais de desporto, em Munique, na Alemanha.

Também em Manteigas, a Burel Factory, começou em 2013 a “vestir” o tablet PC da Microsoft. Nessa altura o Jornal de Negócios escrevia que o burel renasceu em Manteigas, para "aquecer" o mundo.

Ainda em Manteigas nasceu em 2017 a marca de sapatos REALIS. Cada par transporta em si a lã “cem por cento de ovelha” e a garantia de “resistência à humidade e repelência à água”. Bruno Silva e Marlene Gabriel são os empreendedores. Procuraram investir na criação de um produto que tivesse a sua génese no território em que habitam, que ainda tivesse pouca expressão no mercado e utilizasse matérias-primas locais, neste caso o burel originário da região. “Podemos dizer que o burel se comporta de alguma forma como uma membrana sintética de gore-tex, mas de uma forma natural”, explicaram ao JF. 



Prevê-se que a marca desenvolva novos projetos em 2019, nomeadamente na captação de novos mercados na Europa e em termos de criação “iremos lançar novos modelos de senhora e lançar a coleção de homem”. Para já os sapatos Realis são usados “por alguém famoso mas não devemos revelar o nome”.

Mas nem só a norte se reinventa o burel. O criador de moda Miguel Gigante, foi pioneiro nessa arte. A partir do “Atelier do Burel” instalado na antiga fábrica António Estrela na Covilhã e hoje transformada no laboratório criativo “New and Lab”, Gigante transforma o burel em casacos, coberturas de mobiliário, candeeiros, malas, almofadas, alfinetes de lapela e chapéus.

“Iniciei o projeto em Setembro de 2008, mostrei pela primeira vez as primeiras peças no Chocalhos - Festival Caminhos da Transumância em Alpedrinha. Tinha tudo a ver, celebrar a transumância”, descreve o artista capaz de transportar para as suas peças a “essência e alma femininas”, dizem os apreciadores de moda que se habituaram a ver Miguel Gigante como um visionário na arte de dar nova vida à lã das ovelhas. O artista começou por fazer painéis, candeeiros, almofadas alguns acessórios e um casaco.



“Cansado da confeção e de trabalhar a moda” Miguel Gigante deixou-se envolver na descoberta e conceção de obras  para casa. “Ironicamente a peça que teve um sucesso considerável foi o casaco ainda hoje é uma peça desejada pelo mercado”, confessa-nos.

“Sempre gostei mais de criar peças de Outono-Inverno. Inicialmente, fazia experiências, protótipos sem qualquer tipo de pressão”, conta-nos. Para Miguel Gigante o que distingue o burel de outros tecidos é a própria “construção técnica e os princípios que sendo a antítese da indústria atual são a garantia de padrões de qualidade cada vez mais raros”. “A resistência e impermeabilidade são os mais conhecidos, o isolamento de som e temperatura também são fatores de valor”.

Numa avaliação à relação qualidade preço na escolha de uma peça em burel em  detrimento de outros tecidos, Gigante lembra o “composto só de lã bordaleira” enquanto garantia de “proteção do frio e o conforto” de um tecido 100% natural. Características “cada vez menos comuns na confeção tradicional três vezes mais cara e com menos durabilidade”, adverte.

A partir da Covilhã, Miguel Gigante pretende continuar a afirmar um produto que identifica um território e que em 2013 lhe valeu a assinatura de peças no âmbito do projeto Aldeias Históricas de Portugal. “Uma coleção de roupa inspirada na arquitetura, lendas e tradições dos tempos medievais e composta por casacos, saia, camisolas e acessórios diversos”. Detentor de uma carteira de clientes espalhados pela Europa, Miguel Gigante apresenta regularmente as suas peças em eventos ou em lojas que vivem do mercado turístico.

Ana Gonçalo é designer têxtil há vinte anos mas só há quatro anos, a partir do CINCO atelier, iniciou a experiência no burel. “A minha primeira peça foi uma clutch. Foi o modelo que mais me motivou. Como nunca tinha trabalhado com esse tecido, foi um desafio enorme”, partilhou com o JF a designer que há uns anos esteve em foco por ter concebido a nova linguagem e imagem de marca da Covilhã. “A Tecer o Futuro”, Ana Gonçalo coloca em cada peça que faz um pouco de si. Motiva-se sobremaneira de cada vez que dá corpo a uma nova “carteira de ombro que, além do trabalho de modelação e costura, tem bordados em fio de lã e crochet no mesmo fio”. “Eu gosto de misturar técnicas, tornando a peça mais rica e apelativa. 

O burel é um tecido que tem bastante corpo, tornando o processo de modelação das peças bastante motivante. Como é um material denso que foi "batanado", conferindo propriedades de feltro, ele não desfia nas extremidades, quando cortado”. E isso permite-lhe "pensar" nas peças com maior ambição. Mas desengane-se quem pensa que construir uma peça de burel é fácil! 

“É um tecido muito espesso, difícil de costurar peças complexas...antes de pensar na peça que quero realizar tenho de pensar muito bem e testar algumas costuras e moldes”, revela-nos. Considerando que a lã de ovelha é incomparavelmente mais valiosa que um qualquer outra matéria-prima sintética, Ana Gonçalo congratula-se por observar como o burel, de tão valorizado e cheio de possibilidades, devolveu emprego a muitas pessoas que assistiram à crise dos lanifícios.

Da Covilhã para o Fundão encontramos o “Adelma Atelier”. Desenvolvido por Lina Ferreira, o projeto de aproveitamento e transformação do burel teve início há quatro anos e as primeiras criações foram das a conhecer ao público na 5ª edição do "Pechakucha", exatamente no Fundão.


Ao JF a criativa fala do empenho e dedicação que coloca em cada peça que produz. Apreciadora de tudo o que seja português, genuíno e icónico,  Lina Ferreira diz que “não poderia deixar de usar o burel” nas suas coleções. Apesar do ainda curto percurso, Lina Ferreira orgulha-se do prémio “melhor peça de artesanato”, conquistado na edição de 2014 do Festival chocalhos. “Um prémio e reconhecimento do júri que avalio um casaco comprido confecionado em burel, lã bordaleira e tecido de cortiça”.  



Além do vestuário, o burel está presente nos acessórios de moda e algumas peças decorativas como mantas, tapetes e almofadas, assinados por Lina Ferreira. No entanto e na área da decoração o burel permite desenvolver “ambientes rústicos e acolhedores”, considerou.
O “Adelma Atelier” no Centro Comercial Cidade Nova, no Fundão, dispõe de algumas peças no Hotel H2O em Unhais da Serra.

Texto originalmente publicado na edição de 6 de dezembro de 2018 do Jornal do Fundão.

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