Apaixonou designers e
criativos. É muito mais que um agasalho. Habitualmente utilizado na decoração
de interiores e mobiliário, o produto serrano é também matéria-prima para sapatos
e ferramentas tecnológicas. A Microsoft, esse gigante da informática, rendeu-se
às características do tecido tradicional que agora “agasalha” os tablets.
À
descoberta do burel. Poderia ser este o título do texto no qual nos propomos
partilhar com os leitores o percurso de inovação que caracteriza o tecido
artesanal português totalmente feito de lã. “Depois de carmeada e cardada, a lã
transforma-se em mecha. A mecha é torcida na fiação e transforma-se em fio. O
mesmo se passa pela urdideira originando a teia. O tear transforma a teia em
xerga. A xerga passa pelo batano e por outros tratos e transforma-se finalmente
em burel”. Explicações plasmadas numa folha de sala dedicada a trabalhos em
burel.
Já
as características técnicas e diferenciadoras do tecido “resistente e versátil”
conferem ao burel mais que a garantia de aconchego. As experiências à volta da
sua textura, padrões e cores transformam-no numa panóplia de oportunidades e peças
diferenciadoras que enriquecem o portefólio criativo de quem desejava
afirmar-se na decoração de interiores e na valorização de algo que para muitos
não passava de um tecido grosseiro e rústico apenas utilizado pelos pastores.
Cabeceiras
de cama, painéis de parede, quadros, corredores de mesa, capas de almofadas e
uma multiplicidade de peças utilitárias são hoje uma realidade na utilização do
burel. E até já há sapatos e ténis em burel! No ano passado uns ténis feitos com burel e produzidos
pela Burel Factory, uma empresa de
Manteigas, receberam um prémio de inovação, numa das maiores feiras mundiais de
desporto, em Munique, na Alemanha.
Também em Manteigas, a
Burel Factory, começou em 2013 a “vestir” o tablet PC da Microsoft. Nessa altura o Jornal de Negócios escrevia que o burel renasceu em Manteigas, para "aquecer" o mundo.
Ainda
em Manteigas nasceu em 2017 a marca de sapatos REALIS. Cada par transporta em
si a lã “cem por cento de ovelha” e a garantia de “resistência à humidade e
repelência à água”. Bruno
Silva e Marlene Gabriel são os empreendedores.
Procuraram investir na criação de um produto que tivesse a sua génese no
território em que habitam, que ainda tivesse pouca expressão no mercado e
utilizasse matérias-primas locais, neste caso o burel originário da
região. “Podemos dizer que o burel se comporta de alguma forma como uma
membrana sintética de gore-tex, mas
de uma forma natural”, explicaram ao JF.
Prevê-se
que a marca desenvolva novos projetos em 2019, nomeadamente na captação de
novos mercados na Europa e em termos de criação “iremos lançar novos modelos de
senhora e lançar a coleção de homem”. Para já os sapatos Realis são usados
“por alguém famoso mas não devemos revelar o nome”.
Mas nem só a norte se reinventa o burel. O criador de moda
Miguel Gigante, foi pioneiro nessa arte. A partir do “Atelier do Burel” instalado
na antiga fábrica António Estrela na Covilhã e hoje transformada no laboratório
criativo “New and Lab”, Gigante transforma o burel em casacos, coberturas de
mobiliário, candeeiros, malas, almofadas, alfinetes de lapela e chapéus.
“Iniciei
o projeto em Setembro de 2008, mostrei pela primeira vez as primeiras peças no
Chocalhos - Festival Caminhos da Transumância em Alpedrinha. Tinha tudo a ver, celebrar
a transumância”, descreve o artista capaz de transportar para as suas peças a “essência
e alma femininas”, dizem os apreciadores de moda que se habituaram a ver Miguel
Gigante como um visionário na arte de dar nova vida à lã das ovelhas. O artista
começou por fazer painéis, candeeiros, almofadas alguns acessórios e um casaco.
“Cansado
da confeção e de trabalhar a moda” Miguel Gigante deixou-se envolver na
descoberta e conceção de obras para casa. “Ironicamente a peça que teve
um sucesso considerável foi o casaco ainda hoje é uma peça desejada pelo
mercado”, confessa-nos.
“Sempre
gostei mais de criar peças de Outono-Inverno. Inicialmente, fazia experiências,
protótipos sem qualquer tipo de pressão”, conta-nos. Para Miguel Gigante o que
distingue o burel de outros tecidos é a própria “construção técnica e os princípios
que sendo a antítese da indústria atual são a garantia de padrões de qualidade
cada vez mais raros”. “A resistência e impermeabilidade são os mais conhecidos,
o isolamento de som e temperatura também são fatores de valor”.
Numa
avaliação à relação qualidade preço na escolha de uma peça em burel em
detrimento de outros tecidos, Gigante lembra o “composto só de lã bordaleira”
enquanto garantia de “proteção do frio e o conforto” de um tecido 100% natural.
Características “cada vez menos comuns na confeção tradicional três vezes mais
cara e com menos durabilidade”, adverte.
A
partir da Covilhã, Miguel Gigante pretende continuar a afirmar um produto que
identifica um território e que em 2013 lhe valeu a assinatura de peças no
âmbito do projeto Aldeias Históricas de Portugal. “Uma coleção de roupa
inspirada na arquitetura, lendas e tradições dos tempos medievais e composta
por casacos, saia, camisolas e acessórios diversos”. Detentor de uma carteira
de clientes espalhados pela Europa, Miguel Gigante apresenta regularmente as
suas peças em eventos ou em lojas que vivem do mercado turístico.
Ana Gonçalo é designer têxtil há vinte anos mas só há quatro
anos, a partir do CINCO atelier, iniciou a experiência no burel. “A minha
primeira peça foi uma clutch. Foi o
modelo que mais me motivou. Como nunca tinha trabalhado com esse tecido, foi um
desafio enorme”, partilhou com o JF a designer
que há uns anos esteve em foco por ter concebido a nova linguagem e imagem
de marca da Covilhã. “A Tecer o Futuro”, Ana Gonçalo coloca em cada peça que
faz um pouco de si. Motiva-se sobremaneira de cada vez que dá corpo a uma nova “carteira
de ombro que, além do trabalho de modelação e costura, tem bordados em fio de
lã e crochet no mesmo fio”. “Eu gosto de misturar técnicas, tornando a peça
mais rica e apelativa.
O burel é um tecido que tem bastante corpo, tornando o
processo de modelação das peças bastante motivante. Como é um material denso
que foi "batanado", conferindo propriedades de feltro, ele não desfia
nas extremidades, quando cortado”. E isso permite-lhe "pensar" nas
peças com maior ambição. Mas desengane-se quem pensa que construir uma peça de
burel é fácil!
“É um tecido muito espesso, difícil de costurar peças
complexas...antes de pensar na peça que quero realizar tenho de pensar muito
bem e testar algumas costuras e moldes”, revela-nos. Considerando que a lã de
ovelha é incomparavelmente mais valiosa que um qualquer outra matéria-prima
sintética, Ana Gonçalo congratula-se por observar como o burel, de tão
valorizado e cheio de possibilidades, devolveu emprego a muitas pessoas que
assistiram à crise dos lanifícios.
Da Covilhã para o Fundão encontramos o “Adelma Atelier”.
Desenvolvido por Lina Ferreira, o projeto de aproveitamento e transformação do
burel teve início há quatro anos e as primeiras criações foram das a conhecer
ao público na 5ª edição do "Pechakucha", exatamente no
Fundão.
Ao JF a criativa fala
do empenho e dedicação que coloca em cada peça que produz. Apreciadora de tudo
o que seja português, genuíno e icónico, Lina Ferreira diz que “não
poderia deixar de usar o burel” nas suas coleções. Apesar do ainda curto
percurso, Lina Ferreira orgulha-se do prémio “melhor
peça de artesanato”, conquistado na edição de 2014 do Festival chocalhos. “Um
prémio e reconhecimento do júri que avalio um casaco comprido confecionado em
burel, lã bordaleira e tecido de cortiça”.
Além do vestuário, o burel está presente nos acessórios de moda e
algumas peças decorativas como mantas, tapetes e almofadas, assinados por Lina
Ferreira. No entanto e na área da decoração o burel permite desenvolver “ambientes
rústicos e acolhedores”, considerou.
O
“Adelma Atelier” no Centro Comercial Cidade Nova, no Fundão, dispõe de algumas
peças no Hotel H2O em Unhais da Serra.
Texto originalmente publicado na edição de 6 de dezembro de 2018 do Jornal do Fundão.